Maria de Trás-os-Montes, mas bem poderia ser de Lisboa, das Beiras ou do Alentejo, obriga o Estado a muito esforço e em nada contribui para o progresso desta sociedade integrada na Europa dos 27.
Diz-se que o português é triste, pessimista e dado à maledicência, por razões provavelmente antropológicas, e que culpa, invariávelmente, o Estado de um destino que lhe parece fadado para a desgraça e a frustração. Diz-se que é negativo e conformista. Que não compreende tudo o que os seus governantes labutam diáriamente pelo seu bem estar.
Imaginemos, então, uma cidadã
nascida e residente em algum lugarejo, por exemplo, em Trás-os-Montes. Chamemos-lhe
Maria e suponhamos que tem 90 anos. Os dois filhos emigraram há muitos anos para
a América e aquele que ainda vive só vem de muitos em muitos anos a Portugal. Desde
que ficou viúva, nem tudo tem corrido bem, por culpa própria, pois, dada como é
ao pessimismo típicamente português, nada tem feito para triunfar na vida e responder
positivamente aos apelos entusiásticos dos governantes no sentido de modernizar
as mentalidades e mudar comportamentos.
Não sabia, apesar dos esforços da diligente Administração Pública, que toda a sua situação fiscal se encontra na internet (nem sabe o que isso é, pasme-se!...) e que o defunto estava atrasado na declaração de IRS. Com a desculpa de que é quase analfabeta e mais o glaucoma, não sabe que já não há impressos do imposto de selo e do IMI, os quais, aliás, também nunca soube ao certo o que eram.
Não faz ideia de como identificar os bens móveis e imóveis que tem, mais os do filho sobrevivo e os dos netos nascidos do outro filho, nem entende o que é de quem tendo em conta o regime de bens em que se casara. Fica apática quando um vizinho lhe diz que tem de apresentar licenças de construção e de utilização e certidões prediais nas finanças.
Não faz habilitação de herdeiros, mesmo quando lhe dizem que é necessária. Não entende porque lhe escrevem cartas com coimas por irregularidades diversas que cometeu por não tratar de todas aquelas coisas que não entende, porque não atribui significado às palavras constantes das notificações, como, aliás, não atribui a nenhuma das outras palavras que, sem que soubesse, eram tão importantes na sua nova vida de viúva, com 90 anos, quase cega.
Maria não imagina, sequer, que tipo de deveres tem, pois a sua debilitada memória
vagueia pelo tempo em que a Casa do Povo e a Estação dos Correios eram o único sinal
de um país para lá da aldeia.
O seu pessimismo leva-a, portanto,
a não dar valor a expressões como “velhos são os trapos”, o que demonstra, à sociedade,
que pertence a uma geração derrotada e distante dos benefícios da modernidade.
Num belo dia, entra-lhe em
casa a justa penhora que, como é próprio de uma sociedade democrática, se aplica
a todos os contribuintes incumpridores, sem distinção de sexo, idade, condição social
ou lugar de nascimento. “Dura lex, sed lex”.
Maria ficará desamparada por
perder a casa, a courela, as ovelhas? Não! O Estado reserva-lhe, sem dúvida, algum
lar da Segurança Social para que tenha tecto e sopa. Ou talvez não reserve, mas
a culpa foi dela que tentou fugir aos seus deveres de cidadã. O que esperava? E
o filho que está na América, não podia ter dado uma ajuda? Não sabia o que estava
a acontecer?!?... Não emigrasse...
Maria não pertence a uma minoria,
nem a um bairro problemático. Não pode trocar a barraca por uma casa, pois nunca
roubou ou invadiu propriedade alheia e, por isso, não tem direito a uma discriminação
social positiva. Maria não vota. Maria não paga. Maria vale menos do que o chocalho
distante no pasto morno de Agosto.
Maria de Trás-os-Montes, mas
bem poderia ser de Lisboa, das Beiras ou do Alentejo, obriga o Estado a muito esforço
e em nada contribui para o progresso desta sociedade integrada na Europa dos 27.
Ela, Maria, representa bem o português pessimista, derrotista, que culpa o destino
ou o Governo, em vez de olhar para as suas próprias incapacidades.
Maria não sabe quem são os
gestores ilustres, os futebolistas ilustres, os modelos ilustres, os políticos ilustres,
os presidiários ilustres, mais todos os ilustres que são todos os que os jornalistas
ilustres quiserem que sejam. Mas chora com a memória dos netos que já não poderá
abraçar.
Maria nunca teve o Cartão de
Cidadão, com chip, verdadeiro símbolo distintivo de uma cidadania responsável!
Às tantas, é capaz de morrer,
sem morte assistida, só por dar uma trabalheira...
F. do Valle, doutorando em Direito
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