A “exposição de
motivos” do projeto do PS insiste com razão sobre a importância
da liberdade. É
muito difícil de verificar que não existem pressões, explícitas
ou implícitas, do médico ou/e da família a favor da eutanásia. O
que doente quer, em primeiro lugar, é que sua dor seja aliviada. O
pedido de eutanásia é um pedido de ajuda, e principalmente um apelo
ao reconhecimento que sua vida ainda tem valor. O doente deseja que
tudo seja feito para restaurar uma qualidade de vida aceitável.
Lembrem-se: quase todas as dores físicas podem ser aliviadas. Para
doentes sós que não têm família e não recebem visitas, e que
também não são corretamente acompanhados numa instituição de
segunda categoria, o fim de vida se torna extremamente difícil. Tal
situação concerne principalmente pessoas marginalizadas e pobres. É
compreensível que estas pessoas peçam a eutanásia. A
responsabilidade do Estado é fazer com que cuidados paliativos de
qualidade sejam acessíveis a todos sem exceção nem discriminação
e que pessoas formadas sejam disponíveis para ser presentes perto do
doente para que ele não sofra de solidão e tenha um acompanhamento
humano e espiritual conforme aos seus desejos. Com certeza, o acesso
à eutanásia não pode ser uma solução a carências dos serviços
de saúde no acompanhamento dos doentes.
Algumas considerações
específicas sobre o projeto de lei do PS
O texto do projeto de lei
estipula claramente que o médico orientador “verifica se o doente
mantém e reitera a sua vontade” (Art. 5, p. 12) e que o doente
deve ser “consciente”. Mas o texto não diz explicitamente que o
médico orientador deveria verificar que a vontade de obter a
eutanásia é livre e isenta de pressão de qualquer tipo. O art. 6
prevê a verificação por um psiquiatra da decisão livre em algumas
situações nas quais a capacidade psíquica da pessoa pedinte está
em dúvida. O art. 17, d. insiste que os médicos e profissionais de
saúde devem “assegurar que a decisão do doente é livre,
esclarecida e informada”. Mas não consta no projeto a menção de
uma pessoa precisa ou de uma comissão responsável (o art. 7
relativa ao parecer da Comissão de Verificação e Avaliação (CVA)
não se refere à vontade livre do doente) para assegurar que a
decisão não é o resultado se pressões da família ou outros. De
uma certa forma, isso é compreensível, porque é extremamente
difícil verificar que não existem pressões, as vezes implícitas,
da parte dos membros da família ou médicos que podem por exemplo
fazem sentir ao doente que ele é um peso para eles. Mas tal ausência
de pressões é uma condição crucial para que a vontade do doente
seja livre, e esta condição é muito difícil, senão impossível,
de se verificar. Juridicamente, uma condição que não pode ser
verificada é uma condição vazia. Além disso, o médico orientador
deve prestar ao doente “toda a informação e esclarecimento sobre
a situação clínica que o afeta, os tratamentos aplicáveis,
viáveis e disponíveis e o respetivo prognóstico” (Art. 5, p. 12)
É claro que uma decisão livre somente pode ser tomada se todas as
informações relevantes foram comunicadas ao doente. Mais uma vez, é
difícil garantir e verificar que de fato todas essas informações
têm sido efetivamente fornecidas pelo médico orientador. Repare-se também que, de modo surpreendente, os cuidados paliativos não são
mencionados entre essas informações no projeto de lei. Portanto,
estamos autorizados a concluir que não podem existir garantias
suficientes para que o doente que pede a eutanásia o faça de
maneira completamente livre e esclarecida e que aqueles que mais a
pedirão serão provavelmente as pessoas que se encontram numa
situação de fragilidade econômica ou social.
Ao contrário das leis
vigentes em países como a Bélgica ou a Holanda, o controle do
caráter não punível de uma eutanásia se faria, segundo o projeto
do PS, antecipadamente. Isto certamente é melhor do que uma
avaliação ex post facto, como se faz na Bélgica e na Holanda. A
Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) (Art. 7) de cinco
membros deve dar um parecer favorável na base dos relatórios do
médico orientador e do médico especialista, assim como da
declaração assinada pelo doente. Contudo, não se diz se uma
maioria ou a unanimidade da CVA é requerida. O problema é que, uma
vez que o princípio de acesso à eutanásia não punível em certos
casos for sancionado por lei, demoras e complicações
administrativas podem incentivar a multiplicação de eutanásias
ilegais. Por exemplo, alguns médicos poderiam ser tentados a aumentar as doses de morfina além do necessário para aliviar a dor
e assim provocar a morte do doente, se as condições previstas pela
lei forem cumpridas e sem ter que se submeter a todo o processo e
trâmite administrativo legalmente previsto. Em 2013 na Bélgica, uma
sondagem conduzida anonimamente entre médicos pelo “End-of-life-care
research group” (ligado à Vrije Universiteit Brussel (VUB) que não
é uma Universidade católica) revelou que cerca de 1000 eutanásias
involuntárias (sem o pedido manifesto do doente) foram praticadas
(Chambaere et al. 2015). Em 2013, 1807 eutanásias foram devidamente
declaradas à “Commission de contrôle”. Segundo o projeto de lei
do PS, para ter acesso a uma eutanásia, o doente deve estar numa
situação de “sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença
incurável e fatal”. (Convém frisar o uso da palavra “ou”).
Esta condição para ter acesso a “antecipação da morte” merece
alguns comentários esclarecedores. Precisa reparar, em primeiro
lugar, que um sofrimento pode ser extremo e, ao mesmo tempo, ser
aliviável. A lei belga tem pelo menos o mérito de estipular que a
dor deve ser constante, insuportável e não aliviável. Em segundo
lugar, o texto do projeto não diz que o sofrimento deve ser causado
ou ser uma consequência de uma lesão ou uma doença. (Na Bélgica,
a lei de 2002 estipula que o sofrimento físico ou psíquico deve ser
insuportável, constante e não-aliviável, e causado por uma afecção
patológica ou acidental grave e incurável.) A dificuldade é que o
caráter “extremo” de um sofrimento é um dado subjetivo, sendo o
doente o único capaz de avaliar a intensidade de sua dor. Ao
contrário, a presença de uma doença que causa uma dor, é um dado
objetivo, ou pelo menos mais objetivo do que a percepção subjetiva
de sofrimento. Logo, segundo o projeto do PS, um paciente pode sentir
uma dor extrema, por exemplo psíquica, e ter uma lesão definitiva ou
uma doença incurável e fatal. Embora o sofrimento e a lesão (ou a
doença) não estejam relacionados. Em terceiro lugar, e ainda mais
preocupante, o projeto abre a porta à eutanásia de uma pessoa com
handicap que tem uma “lesão definitiva” sem ter uma “doença
incurável e fatal” (em razão da presença de ou no texto) desde
que ela mencione que está num estado de sofrimento julgado
subjetivamente “extremo”, que esteja consciente e faça um pedido
livre e esclarecido de antecipação de morte, mesmo que a morte não
esteja próxima. Convém salientar que o texto do projeto não
especifica que a lesão deve ser grave. É suficiente que seja
“definitiva” como, para tomar um exemplo admitidamente extremo, a
perda de um dedo. Em quarto lugar, o projeto de lei não menciona que
uma pessoa teria que ser em final de vida para ter acesso à
eutanásia. A situação de final de vida é mencionada duas vezes na
“exposição de motivos”, mas não consta explicitamente do
projeto de lei como tal. Em quinto lugar, o projeto menciona que no
caso de doença, ela deve ser fatal, quer dizer, provocar a morte, a
curto ou longo prazo. Isto é importante porque doenças psíquicas,
como a depressão profunda, longa e aparentemente incurável (embora
o diagnóstico de incurabilidade seja muito difícil em caso de
doenças psíquicas), não têm em geral um caráter fatal e não são
associadas a uma lesão definitiva. Nesse aspecto, o projeto de lei
do PS é mais prudente, porque não abre o acesso à eutanásia em
caso de doenças psíquicas.
Em sexto lugar, o projeto
de lei do PS garante a liberdade de consciência de todos os
profissionais de saúde que não são nunca obrigados a praticar uma
eutanásia, mas não garante explicitamente a liberdade de
instituições de não praticar a eutanásia dentro de seus muros.
Michel Ghins, professor de Filosofia na Université Catholique de Louvain