segunda-feira, 9 de março de 2020

Análise ao projecto lei de eutanásia do PS - por Michel Ghins


A “exposição de motivos” do projeto do PS insiste com razão sobre a importância da liberdade. É muito difícil de verificar que não existem pressões, explícitas ou implícitas, do médico ou/e da família a favor da eutanásia. O que doente quer, em primeiro lugar, é que sua dor seja aliviada. O pedido de eutanásia é um pedido de ajuda, e principalmente um apelo ao reconhecimento que sua vida ainda tem valor. O doente deseja que tudo seja feito para restaurar uma qualidade de vida aceitável. Lembrem-se: quase todas as dores físicas podem ser aliviadas. Para doentes sós que não têm família e não recebem visitas, e que também não são corretamente acompanhados numa instituição de segunda categoria, o fim de vida se torna extremamente difícil. Tal situação concerne principalmente pessoas marginalizadas e pobres. É compreensível que estas pessoas peçam a eutanásia. A responsabilidade do Estado é fazer com que cuidados paliativos de qualidade sejam acessíveis a todos sem exceção nem discriminação e que pessoas formadas sejam disponíveis para ser presentes perto do doente para que ele não sofra de solidão e tenha um acompanhamento humano e espiritual conforme aos seus desejos. Com certeza, o acesso à eutanásia não pode ser uma solução a carências dos serviços de saúde no acompanhamento dos doentes.  
Algumas considerações específicas sobre o projeto de lei do PS 
O texto do projeto de lei estipula claramente que o médico orientador “verifica se o doente mantém e reitera a sua vontade” (Art. 5, p. 12) e que o doente deve ser “consciente”. Mas o texto não diz explicitamente que o médico orientador deveria verificar que a vontade de obter a eutanásia é livre e isenta de pressão de qualquer tipo. O art. 6 prevê a verificação por um psiquiatra da decisão livre em algumas situações nas quais a capacidade psíquica da pessoa pedinte está em dúvida. O art. 17, d. insiste que os médicos e profissionais de saúde devem “assegurar que a decisão do doente é livre, esclarecida e informada”. Mas não consta no projeto a menção de uma pessoa precisa ou de uma comissão responsável (o art. 7 relativa ao parecer da Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) não se refere à vontade livre do doente) para assegurar que a decisão não é o resultado se pressões da família ou outros. De uma certa forma, isso é compreensível, porque é extremamente difícil verificar que não existem pressões, as vezes implícitas, da parte dos membros da família ou médicos que podem por exemplo fazem sentir ao doente que ele é um peso para eles. Mas tal ausência de pressões é uma condição crucial para que a vontade do doente seja livre, e esta condição é muito difícil, senão impossível, de se verificar. Juridicamente, uma condição que não pode ser verificada é uma condição vazia. Além disso, o médico orientador deve prestar ao doente “toda a informação e esclarecimento sobre a situação clínica que o afeta, os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis e o respetivo prognóstico” (Art. 5, p. 12) É claro que uma decisão livre somente pode ser tomada se todas as informações relevantes foram comunicadas ao doente. Mais uma vez, é difícil garantir e verificar que de fato todas essas informações têm sido efetivamente fornecidas pelo médico orientador. Repare-se também que, de modo surpreendente, os cuidados paliativos não são mencionados entre essas informações no projeto de lei. Portanto, estamos autorizados a concluir que não podem existir garantias suficientes para que o doente que pede a eutanásia o faça de maneira completamente livre e esclarecida e que aqueles que mais a pedirão serão provavelmente as pessoas que se encontram numa situação de fragilidade econômica ou social.
Ao contrário das leis vigentes em países como a Bélgica ou a Holanda, o controle do caráter não punível de uma eutanásia se faria, segundo o projeto do PS, antecipadamente. Isto certamente é melhor do que uma avaliação ex post facto, como se faz na Bélgica e na Holanda. A Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) (Art. 7) de cinco membros deve dar um parecer favorável na base dos relatórios do médico orientador e do médico especialista, assim como da declaração assinada pelo doente. Contudo, não se diz se uma maioria ou a unanimidade da CVA é requerida. O problema é que, uma vez que o princípio de acesso à eutanásia não punível em certos casos for sancionado por lei, demoras e complicações administrativas podem incentivar a multiplicação de eutanásias ilegais. Por exemplo, alguns médicos poderiam ser tentados a aumentar as doses de morfina além do necessário para aliviar a dor e assim provocar a morte do doente, se as condições previstas pela lei forem cumpridas e sem ter que se submeter a todo o processo e trâmite administrativo legalmente previsto. Em 2013 na Bélgica, uma sondagem conduzida anonimamente entre médicos pelo “End-of-life-care research group” (ligado à Vrije Universiteit Brussel (VUB) que não é uma Universidade católica) revelou que cerca de 1000 eutanásias involuntárias (sem o pedido manifesto do doente) foram praticadas (Chambaere et al. 2015). Em 2013, 1807 eutanásias foram devidamente declaradas à “Commission de contrôle”. Segundo o projeto de lei do PS, para ter acesso a uma eutanásia, o doente deve estar numa situação de “sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal”. (Convém frisar o uso da palavra “ou”). Esta condição para ter acesso a “antecipação da morte” merece alguns comentários esclarecedores. Precisa reparar, em primeiro lugar, que um sofrimento pode ser extremo e, ao mesmo tempo, ser aliviável. A lei belga tem pelo menos o mérito de estipular que a dor deve ser constante, insuportável e não aliviável. Em segundo lugar, o texto do projeto não diz que o sofrimento deve ser causado ou ser uma consequência de uma lesão ou uma doença. (Na Bélgica, a lei de 2002 estipula que o sofrimento físico ou psíquico deve ser insuportável, constante e não-aliviável, e causado por uma afecção patológica ou acidental grave e incurável.) A dificuldade é que o caráter “extremo” de um sofrimento é um dado subjetivo, sendo o doente o único capaz de avaliar a intensidade de sua dor. Ao contrário, a presença de uma doença que causa uma dor, é um dado objetivo, ou pelo menos mais objetivo do que a percepção subjetiva de sofrimento. Logo, segundo o projeto do PS, um paciente pode sentir uma dor extrema, por exemplo psíquica, e ter uma lesão definitiva ou uma doença incurável e fatal. Embora o sofrimento e a lesão (ou a doença) não estejam relacionados. Em terceiro lugar, e ainda mais preocupante, o projeto abre a porta à eutanásia de uma pessoa com handicap que tem uma “lesão definitiva” sem ter uma “doença incurável e fatal” (em razão da presença de ou no texto) desde que ela mencione que está num estado de sofrimento julgado subjetivamente “extremo”, que esteja consciente e faça um pedido livre e esclarecido de antecipação de morte, mesmo que a morte não esteja próxima. Convém salientar que o texto do projeto não especifica que a lesão deve ser grave. É suficiente que seja “definitiva” como, para tomar um exemplo admitidamente extremo, a perda de um dedo. Em quarto lugar, o projeto de lei não menciona que uma pessoa teria que ser em final de vida para ter acesso à eutanásia. A situação de final de vida é mencionada duas vezes na “exposição de motivos”, mas não consta explicitamente do projeto de lei como tal. Em quinto lugar, o projeto menciona que no caso de doença, ela deve ser fatal, quer dizer, provocar a morte, a curto ou longo prazo. Isto é importante porque doenças psíquicas, como a depressão profunda, longa e aparentemente incurável (embora o diagnóstico de incurabilidade seja muito difícil em caso de doenças psíquicas), não têm em geral um caráter fatal e não são associadas a uma lesão definitiva. Nesse aspecto, o projeto de lei do PS é mais prudente, porque não abre o acesso à eutanásia em caso de doenças psíquicas.
Em sexto lugar, o projeto de lei do PS garante a liberdade de consciência de todos os profissionais de saúde que não são nunca obrigados a praticar uma eutanásia, mas não garante explicitamente a liberdade de instituições de não praticar a eutanásia dentro de seus muros.

Michel Ghins, professor de Filosofia na Université Catholique de Louvain