sexta-feira, 9 de junho de 2017

Carta aberta de Juristas aos senhores deputados à Assembleia da República


A Carta Aberta de juristas aos deputados da Assembleia da Republica, redigida pelos Professores de Direito Francisco Mendes Correia e Diogo Costa Gonçalves, foi ontem entregue pelo movimento cívico Stop eutanásia aos representantes dos grupos parlamentares.
Nesta Carta os juristas portugueses pedem aos deputados que não legalizem a eutanásia.
Professores de Direito, juízes e advogados defendem que aceitar a descriminalização da eutanásia põe em causa sustentação de ordenamento jurídico. 
O documento foi subscrito por 125 juristas, entre os quais Germano Marques da Silva, Paulo Otero, Francisco Mendes Correia, Diogo Costa Gonçalves, Paulo Adragão, Sofia Galvão, Manuel Monteiro, José Simões Patrício, José Vaz Serra de Moura e Lídia Gamboa.

A propósito da discussão pública de iniciativas legislativas tendentes a descriminalizar o Homicídio a Pedido da Vítima (artigo 134.º do Código Penal) e o Incitamento ou Ajuda ao Suicídio (artigo 135.º do Código Penal) e criar um novo quadro legal.

Exmos. Srs. Deputados,

1. Na matéria em causa, o ordenamento jurídico português não deve ser alterado
Um dos principais fins do Estado é o de garantir a segurança dos cidadãos como condição necessária para a prossecução do bem comum. Esta finalidade é o fundamento da própria existência do Estado: um Estado que não proteja a vida e a integridade física dos seus cidadãos perde um dos pilares — talvez o mais importante — de legitimidade e vê a sua própria existência ser posta em causa. O mesmo se poderia dizer de uma autoridade civil que cooperasse na causação da morte de inocentes: perderia essa natureza e converter-se-ia em tirania.
Neste aspeto, o ordenamento jurídico português apresenta atualmente coerência: os artigos 24.º e 25.º da Constituição da República Portuguesa estabelecem a inviolabilidade da vida humana e da integridade moral e física das pessoas e um conjunto de normas do Código Penal punem as condutas intencionalmente dirigidas a causar a morte de outrem. A punição das condutas intencionalmente dirigidas a causar a morte de outrem mantém-se mesmo quando determinadas por pedido sério da vítima (artigo 134.º – Homicídio a Pedido da Vítima) ou que sejam meramente auxiliares de um processo executado pela vítima (artigo 135.º – Incitamento ou Ajuda ao Suicídio), com um quadro punitivo naturalmente atenuado, tendo em atenção justamente essas circunstâncias.

2. O Direito não pode aceitar que se desvalorizem certas vidas
As iniciativas legislativas em discussão — que pretendem descriminalizar algumas destas condutas intencionalmente dirigidas a causar a morte de outrem, desde que praticadas por profissionais de saúde, a pedido de pessoas com doenças graves e incuráveis, causadoras de sofrimento duradouro e insuportável — revelam uma ideia comum. Apenas se aceita a antecipação da morte de pessoas grave e incuravelmente doentes porque se aceita que estas vidas são menos valiosas ou, pelo menos, que a sociedade deveria reconhecer que estas pessoas assim as (des)valorizem. Admitir como lícitas as condutas intencionalmente dirigidas a provocar a morte de outrem, mesmo que abrangendo um universo delimitado de pessoas inocentes, implica sempre concordar que a morte é para elas um bem jurídico.
Ora, a única forma de evitar o arbítrio e assegurar uma sociedade justa é a de proibir em absoluto valorações juridicamente relevantes sobre a vida dos cidadãos. Uma pessoa é infinitamente digna porque pertence ao género humano, e não porque tenha certas qualidades ou capacidades. E não é possível dissociar a vida da pessoa. Atuar de forma a causar intencionalmente a morte de um inocente implica sempre desvalorizar a sua vida. O Direito não pode aceitar que se desvalorizem certas vidas, porque necessariamente aceitaria que se desvalorizassem certas pessoas.

3. O universo inicialmente limitado de pessoas elegíveis tende a expandir-se
A experiência de outros países que seguiram o rumo legislativo agora pretendido revela que o universo inicialmente limitado de pessoas que podem ser vítimas das condutas a descriminalizar tende a expandir-se à medida que evoluem as conceções dominantes na sociedade sobre o valor e a utilidade da vida de certas classes de pessoas. Numa sociedade consumista, hedonista e utilitarista, ficam assim em perigo os mais débeis: precisamente aqueles cuja proteção é fundamento do próprio Estado! Ficam em perigo os idosos, as crianças, os portadores de deficiências, os doentes psíquicos graves...

4. Fica posta em causa a sustentação do ordenamento jurídico português
Aceitar que se descriminalizem condutas intencionalmente dirigidas a causar a morte de inocentes — como pretendem os projetos legislativos atualmente em debate — é abrir as comportas de um dique que está coerentemente cerrado, na atualidade. Por mais pequena que seja a brecha inicial, fica posta em causa a sustentação do ordenamento jurídico português, e a razão de ser do próprio Estado. Que se mantenham cerradas estas comportas! Que sejam liminarmente rejeitados os anteprojetos de descriminalização da eutanásia e do auxílio ao suicídio!

Os juristas que quiserem subscrever a carta devem enviar nome, profissão numero de cartão de cidadão para o mail stopeutanasia@gmail.com

Pode ler esta Carta Aberta dos Juristas aos deputados da A.R. também no Jornal Público.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Terapia da Dignidade Humana, pela Professora Doutora *Inês Saraiva Ferreira

"Estou aqui como Psicóloga, mas sobretudo como cidadã que se preocupa com os perigos associados à legalização da Eutanásia.
E também porque me identifico com este Movimento Cívico – o Stop Eutanásia, que procurar informar os cidadãos sobre os problemas da Eutanásia e também dar voz a temas estruturantes como os Cuidados Paliativos e a importância do acompanhamento digno das pessoas (e das suas famílias) em situação de doença grave ou incurável. Irei falar-vos de alguns aspetos, ilustrando com dados científicos concretos. Em primeiro lugar ilustrar que os cuidados psicológicos são essenciais em pessoas com doença grave ou incurável.
Por exemplo, um estudo publicado no New England Journal of Medicine (Temel et al., 2010), permitiu comprovar que pessoas recém diagnosticadas com cancro metastático do pulmão, em estádio avançado, e que recebem cuidados paliativos integrando cuidados psicológicos, imediatamente após o diagnóstico, apresentaram uma qualidade de vida mais elevada, um estado emocional mais positivo (humor menos deprimido) e também um tempo de sobrevivência médio mais longo em comparação com os doentes que somente receberam os cuidados oncológicos de praxe.
Já na década de 70, a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que fez um trabalho pioneiro com cerca de 500 doentes terminais (Kübler-Ross 1969, 1970), constatou que a maioria dos doentes apreciava a oportunidade de falar abertamente sobre a sua condição de fragilidade e de proximidade da morte.
Um problema central é que o confronto com a perda de capacidades e com a própria morte é muitas vezes uma dificuldade dos próprios doentes e das suas famílias.
O papel dos psicólogos em cuidados paliativos é essencial, não somente para ajudar o processo de luto (lidar com a perda de capacidades, com a dor e sofrimento, e com a certeza da morte) mas também na “integração” da própria história de vida. 
No final da vida existem duas situações que são comuns: ou entramos em desespero, porque o tempo não volta para traz; ou integramos e aceitamos o que fizemos na nossa vida. E é neste processo de integração, aceitação e de dar sentido à existência que os psicólogos têm um papel a desempenhar.  
Mas em termos psicológicos, o que podemos encontrar numa pessoa com doença grave ou incurável?
É expetável que ocorram sinais e sintomas de depressão, perda de autoestima, sentimentos de desamparo, desesperança ou mesmo pânico.
E será que estas pessoas precisam de cuidados psicológicos ou de ajuda para morrer? Obviamente que abreviar a vida é a solução fácil. Difícil e exigente é cuidar de pessoas em situação de fragilidade.
E quando a saúde mental e o juízo crítico são condicionados, tampouco faz qualquer sentido interromper a vida de uma pessoa que expressa o desejo de morrer. 
Importa fazer uma referência às pessoas com perturbação psiquiátrica e que, não raras vezes, manifestam o desejo de morte. 
Se a eutanásia for legalizada, os grupos mais vulneráveis, em termos de saúde e de acesso aos cuidados, vão ser os mais penalizados.
E a rampa deslizante da lei começa pela eutanásia ser somente para os doentes em grande sofrimento e doenças degenerativas; a seguir fazem-se exceções para pessoas com necessidades especiais (incluindo até crianças) e pessoas com perturbação psiquiátrica cuja qualidade de vida é percebida por reduzida; até simplesmente pessoas com idade avançada.
Um estudo recente publicado na revista internacional JAMA Psychiatry, que descreve as principais características dos doentes psiquiátricos submetidos à eutanásia ou ao suicídio assistido na Holanda, aponta curiosamente que as mulheres com perturbação depressiva grave têm um maior risco de morte deliberada pela eutanásia ou suicídio assistido.
Neste contexto é importante lembrar que as pessoas com perturbação depressiva grave muitas vezes dizem “a minha vida não faz sentido”.  As ideias de ideias de autodesvalorização e autodestruição, geradas por sentimentos de desmerecimento da vida ou de incapacidade para lidar com a dor, são situações comuns nestas pessoas. A eutanásia e o suicídio assistido não são solução, e o alerta é para a necessidade de humanizar o sistema de cuidados de saúde, incluindo a saúde mental. Não pressionemos subtilmente as pessoas, através da lei, a escolher morrer, sendo ainda mais a contenção de custos um fator subjacente.
Uma referência também à eutanásia nos EUA, nomeadamente no estado de Oregon.
É lamentável que a legalização do suicídio assistido, a par do custo proibitivo dos cuidados hospitalares para doentes terminais, esteja a ocasionar o aumento do número de pessoas que decidem morrer em casa, como acontecia antigamente em todo o mundo.
Os cuidados com os doentes terminais devem ser transferidos para profissionais. E a assistência deve ser afetuosa e pessoal, centrada no doente e na sua família, e não somente no alívio da dor física. 
Em Portugal, a Ordem dos Psicólogos tem um Grupo de Trabalho em Cuidados Paliativos que contribuiu para a elaboração da atual lei de base dos cuidados paliativos.
Saudamos o reconhecimento do papel dos psicólogos no cuidado aos doentes, familiares e equipas de saúde. No entanto a burocracia associada à referenciação e ao acesso aos cuidados psicológicos nestes doentes sempre é fácil, pois implica uma avaliação e validação por equipas coordenadoras regionais, o que leva a que seja menor e mais tardia a prestação de cuidados psicológicos em doentes no fim da vida.
Gostaríamos por isso de alertar que os cidadãos em situação de sofrimento por doença incurável ou grave continuam a ser referidos demasiado tarde e que o acompanhamento psicológico continua a ser privilégio só para alguns.
Para finalizar algumas palavras sobre a conceção de dignidade. A morte é um capítulo importante e digno do desenvolvimento humano. Morrer faz parte do viver. E a morte é o fim natural da vida. O que não é natural é decidir morrer, ou os outros decidirem o momento da nossa morte.
A dignidade existe até ao fim. Promover a dignidade no fim da vida é aumentar os cuidados - físicos, psicológicos, espirituais - que comprovadamente atenuam a dor e o sofrimento. Não significa oferecer um “falso consolo” da morte como solução. Esperemos que nós Portugueses não caminhemos nessa direção da legalização da eutanásia."

*Inês Saraiva Ferreira é psicóloga clínica pelo ISPA, com DEA em Psicobiologia pela Universidade de Salamanca e doutorada em Avaliação Psicológica pela Universidade de Coimbra. Tem as especialidades de Neuropsicologia e de Psicologia Clínica e da Saúde (Ordem dos Psicólogos Portugueses). É docente universitária e investiga na área da avaliação psicológica.