terça-feira, 16 de junho de 2020

Eutanásia e civilização - por Nelson Brito, médico

Voltou à discussão parlamentar o tema da eutanásia. É certo que não estamos, como País, como em 2018, e o regresso deste assunto à ordem do dia exigiu-me por isso uma reflexão. No inicio da pandemia que atravessamos, o nosso Primeiro- Ministro, António Costa, afirmou entre outras coisas, o seguinte:
A adopção de medidas para evitar o contágio são uma clara demonstração de elevada consideração de cada pessoa consigo própria e, mais ainda, com o outro. Quase que se poderia dizer hoje que manter dois metros de distância de outra pessoa é um acto de amor.
Creio, por isto, que tem havido um reforço generalizado do sentido de comunidade entre os cidadãos. Como sociedade, a atenção aos mais vulneráveis não começou nem se limita à pandemia, e por isso parece-me que se mantém a obrigação de todos (responsáveis políticos incluídos) nos preocuparmos com todos, especialmente com os mais fragilizados e que não se podem valer a si próprios. A medida do que cada um de nós faz depende das circunstâncias em que se encontra, mas o princípio de sensatez geral de “nos preocuparmos com todos” não enfraquece por isso. Dito isto, penso que nós “todos” que temos o dever de nos preocupar estão incluídas as pessoas com “lesão definitiva ou doença incurável, em sofrimento duradouro e ‘insuportável’”. Conviver com o próprio sofrimento e com o do outro não é necessariamente fácil, mas isso não dispensa os profissionais de saúde, os cuidadores e responsáveis superiores pelos cuidados de saúde de se esforçarem por pôr em prática os meios proporcionados e ao seu alcance com vista a diminuir esse sofrimento (físico, psíquico, existencial, etc). São instrumentos muitas vezes dispendiosos, e que incluem, não apenas meios técnicos e medicamentos, mas também um número e uma ampla diversidade de profissionais. Se não houve dúvidas sobre o sentido dos esforços a levar a cabo no âmbito da pandemia, parece prudente que o rumo a seguir noutras áreas da saúde seja idêntico. Seria, por isso, um contra senso empenharmo-nos na protecção e no cuidado aos outros na sequência da Covid-19, e que simultaneamente se proceda de forma contrária no que outras situações clínicas muito graves diz respeito.
Herbert Hendin, investigador e médico americano reconhecido como uma autoridade em suicídologia, além de constatar a existência da “rampa deslizante” que outros negam, curiosamente também afirmou no epílogo do seu livro Seduced by Death: Doctors, Patients, And Assisted Suicide que "onde a legalização da eutanásia teve lugar houve desinvestimento nos cuidados paliativos".
Escolher se queremos ou não investir esforços e meios financeiros para minorar o sofrimento actuando sobre as suas raízes (função dos médicos e demais profissionais de saúde) é uma escolha civilizacional da nossa sociedade. No fundo, é o que se tem feito sobretudo ultimamente: tentar que haja o mínimo de contágios e de mortes ligadas à Covid-19. Destas reflexões, só consigo concluir que atacar o sofrimento pelas suas várias raízes – para proporcionar uma melhor qualidade de vida àquele que sofre – é o único caminho digno da pessoa.

Nelson Brito: Médico; Mestre em Bioética

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Salvar ou matar? - por Sofia Guedes


Ainda sem nos refazermos deste combate, nem mesmo termos superado os riscos de contágio, com os quais estamos a aprender a viver, a Assembleia da República surpreende-nos de forma muito subtil e silenciosa. A lei da eutanásia, votada favoravelmente na generalidade no dia 20 de Fevereiro e suspensa até agora, é retomada para votação na especialidade. No grupo de trabalho criado para o efeito, são agendadas reuniões e audições, até resultar um texto único, o qual, havendo maioria para o viabilizar já no dia 18 de junho, seguirá para discussão e votação na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. 

Não há dúvida que a pandemia do Covid-19 veio revolucionar a forma de pensar, decidir e agir da humanidade, de cada pessoa em particular e dos responsáveis políticos e governamentais em geral, em todas as partes do mundo, e em Portugal também. A responsabilidade foi talvez a atitude mais vivida nestes tempos de incerteza, de grandes incómodos, de impactos económicos e sociais, ou mesmo religiosos, como jamais ninguém viveu nas atuais gerações, e até em antepassadas. A responsabilidade chegou ao ponto de limitar a nossa liberdade, de não nos permitir fazer praticamente nada. Fomos obedientes, porque acreditámos que para salvar vidas, essa era a condição. À medida que a batalha se travava por todos os meios, uma linha da frente formada por um exército de médicos, enfermeiros e profissionais de saúde de todas as áreas, procurou heroicamente a todo o momento e todos os dias, salvar vidas! Salvar todas as vidas, sabendo que os mais frágeis foram e continuam a ser os mais vulneráveis. Todos assistimos e aplaudimos esses heróis, que abandonaram tudo, largaram as famílias e arriscaram as suas próprias vidas, com esse único intuito: salvar vidas!
Ainda sem nos refazermos deste combate, nem mesmo termos superado os riscos de contágio, com os quais estamos a aprender a viver, a Assembleia da República surpreende-nos de forma muito subtil e silenciosa. A lei da eutanásia, votada favoravelmente na generalidade no dia 20 de Fevereiro e suspensa até agora, é retomada para votação na especialidade. No grupo de trabalho criado para o efeito, são agendadas reuniões e audições, até resultar um texto único, o qual, havendo maioria para o viabilizar já no dia 18 de junho, seguirá para discussão e votação na Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Finalmente, o projeto-lei voltará ao plenário para a votação final.
Esta notícia escandalizou os que a leram (quase nas entrelinhas), pasmando sobretudo aqueles heróis que todos aclamávamos ainda há tão pouco tempo. Afinal, será dado a estes heróis, a possibilidade de escolher entre salvar ou matar. Uma loucura! Médicos serão levados a decidir e a atuar contra a sua própria missão que é cuidar e salvar! Ainda estamos em tempos de pandemia, de muitas incertezas, e sobretudo de muitas fragilidades sociais e económicas. Ainda estamos a salvar vidas. A salvar cada vida. Todas as vidas! Não nos podemos calar, nem deixaremos que se brinque com o maior bem que
temos, a Vida. A coragem, a dedicação, a competência e a luta que travaram os nossos heróis, vão
continuar na linha da frente. Essa é a certeza que todos queremos ter!

Sofia Guedes, fundadora do Stop eutanásia