segunda-feira, 15 de junho de 2020

Salvar ou matar? - por Sofia Guedes


Ainda sem nos refazermos deste combate, nem mesmo termos superado os riscos de contágio, com os quais estamos a aprender a viver, a Assembleia da República surpreende-nos de forma muito subtil e silenciosa. A lei da eutanásia, votada favoravelmente na generalidade no dia 20 de Fevereiro e suspensa até agora, é retomada para votação na especialidade. No grupo de trabalho criado para o efeito, são agendadas reuniões e audições, até resultar um texto único, o qual, havendo maioria para o viabilizar já no dia 18 de junho, seguirá para discussão e votação na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. 

Não há dúvida que a pandemia do Covid-19 veio revolucionar a forma de pensar, decidir e agir da humanidade, de cada pessoa em particular e dos responsáveis políticos e governamentais em geral, em todas as partes do mundo, e em Portugal também. A responsabilidade foi talvez a atitude mais vivida nestes tempos de incerteza, de grandes incómodos, de impactos económicos e sociais, ou mesmo religiosos, como jamais ninguém viveu nas atuais gerações, e até em antepassadas. A responsabilidade chegou ao ponto de limitar a nossa liberdade, de não nos permitir fazer praticamente nada. Fomos obedientes, porque acreditámos que para salvar vidas, essa era a condição. À medida que a batalha se travava por todos os meios, uma linha da frente formada por um exército de médicos, enfermeiros e profissionais de saúde de todas as áreas, procurou heroicamente a todo o momento e todos os dias, salvar vidas! Salvar todas as vidas, sabendo que os mais frágeis foram e continuam a ser os mais vulneráveis. Todos assistimos e aplaudimos esses heróis, que abandonaram tudo, largaram as famílias e arriscaram as suas próprias vidas, com esse único intuito: salvar vidas!
Ainda sem nos refazermos deste combate, nem mesmo termos superado os riscos de contágio, com os quais estamos a aprender a viver, a Assembleia da República surpreende-nos de forma muito subtil e silenciosa. A lei da eutanásia, votada favoravelmente na generalidade no dia 20 de Fevereiro e suspensa até agora, é retomada para votação na especialidade. No grupo de trabalho criado para o efeito, são agendadas reuniões e audições, até resultar um texto único, o qual, havendo maioria para o viabilizar já no dia 18 de junho, seguirá para discussão e votação na Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Finalmente, o projeto-lei voltará ao plenário para a votação final.
Esta notícia escandalizou os que a leram (quase nas entrelinhas), pasmando sobretudo aqueles heróis que todos aclamávamos ainda há tão pouco tempo. Afinal, será dado a estes heróis, a possibilidade de escolher entre salvar ou matar. Uma loucura! Médicos serão levados a decidir e a atuar contra a sua própria missão que é cuidar e salvar! Ainda estamos em tempos de pandemia, de muitas incertezas, e sobretudo de muitas fragilidades sociais e económicas. Ainda estamos a salvar vidas. A salvar cada vida. Todas as vidas! Não nos podemos calar, nem deixaremos que se brinque com o maior bem que
temos, a Vida. A coragem, a dedicação, a competência e a luta que travaram os nossos heróis, vão
continuar na linha da frente. Essa é a certeza que todos queremos ter!

Sofia Guedes, fundadora do Stop eutanásia

2 comentários:

  1. Querida Sofia. Por favor diga-nos o que podemos fazer? Uma petição? Há algum meio de travar esta coisa hedionda? Ana João Filipe

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  2. O processo legislativo segue o seu curso, como tudo na vida e, agora que as coisas estão a voltar ao normal, ele retoma. Não percebo a dúvida. Por outro lado, como filha de alguém com problemas de mobilidade (muito) reduzida que acabou a sua vida acamada durante perto de 7 anos e que, a dada altura me perguntou, se ela decidisse pôr fim à vida dela através da eutanasia, se eu, filha, estaria disposta a levá-la até à Suíça (ou Holanda, já não me lembro, mas a mãe já tinha a pesquisa dela feita), devo dizer que a pergunta foi chocante mas a minha resposta sem hesitações. Claro que o faria. Se esse fosse o último desejo da mãe. Claro, se estivesse em sofrimento, óbvio. No fim, o destino quis que a mãe fosse embora em paz, a dormir e sem dor e que a mim me fosse poupado mais esse calvário. Mas estivesse ela em sofrimento e eu faria exactamente o que ela me tinha pedido e eu prometido que faria. Quem quiser morrer no meio de um sofrimento psicológico e físico indizível, pois que o faça e muitos parabéns. Mas que faça o obséquio de se abster de impor a própria visão do mundo, da vida e da morte aos outros. Não se ama menos um pai, uma mãe ou um familiar ou a própria vida por deixá-los ir embora da forma que os fizer sofrer menos. A isso chama-se respeitar a vontade e dignidade dos outros. A verdadeira caridade é fazer aquilo que até nos pode chocar do ponto de vista moral apenas porque alguém que amamos nos pede para o fazer. Aliás um pedido que é o último da vida. Sinceramente quem não vê isto é muito cego. Daquela cegueira que esconde uma boa camada do mais bruto e ignorante fundamentalismo.

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