quinta-feira, 29 de março de 2018

Na Bélgica fazem-se 1000 eutanásias involuntárias por ano - análise social do Bioético Michel Ghins*

O filósofo belga Michel Ghins, estuda o pensamento do ser humano, explica ao stopeutanasia.pt quais as repercussões que pode ter uma lei como a eutanásia na sociedade em geral, para as famílias e para as gerações vindouras.

"Uma lei que dê acesso à eutanásia pode ter duas formas: ou, seja por um lado dá o direito a eutanásia (como no Québec), por outro lado, pode despenalizar a eutanásia em certas condições (como na Bélgica e na Holanda). No caso de um direito, o Estado tem a obrigação de tomar providências para que este direito seja respeitado. No caso da despenalização, o acesso à eutanásia é possível desde que um médico aceite o pedido de eutanásia. A liberdade de consciência de um médico é mais garantida no segundo caso. No primeiro caso, tem um risco maior de pressão sobre médicos, porque a existência de um direito acarreta uma obrigação.
Na Bélgica, a eutanásia é despenalizada, como se sabe. Porém, a mentalidade da população evoluiu muito rapidamente em 16 anos, e muitos consideram de fato a eutanásia como um direito. Todos acreditam que todos tem o direito de morrer com dignidade, o que é perfeitamente defensável. Mas esse direito a uma morte digna confunde-se hoje com o direito a ser eutanasiado, porque morrer em sofrimento é considerado como uma morte indigna. Esta confusão é conscientemente promovida pelos movimentos pro-eutanásia como a Association du droit de mourir dans la dignité (ADMD). Cada vez mais pressões são exercidas pelo paciente, e sua família para que médicos e até enfermeiros e enfermeiras (embora seja proibido por lei) realizem eutanásias, apesar dos progressos da medicina no tratamento das dores físicas e psíquicas: pouquíssimas dores não podem ser aliviadas. O ultimo recurso é a sedação paliativa (reversível ou não) que não pode ser confundida com uma eutanásia que é um ato ativo ou passivo que causa a morte do paciente, com a intenção de pôr fim a vida do mesmo.
A eutanásia é sempre um homicídio. Mesmo que a motivação seja aliviar a dor, o ato objetivo é de injetar um produto que provocará a morte a curto prazo. Isto não pode ser considerado como o “último” cuidado paliativo, como muitos o pretendem agora na Bélgica. Isto muda completamente o relacionamento do médico com o paciente. O médico torna-se alguém que pode também provocar a morte, até (como está acontecendo cada vez com mais frequência), sem o pedido do paciente, tipicamente sob a pressão da família. Mais ou menos 1000 eutanásias involuntárias (sem pedido do paciente) acontecem cada ano na Bélgica. Um médico pro-eutanásia e professor na Universidade de Gent, Marc Cosyns, declarou recentemente que fazem-se cerca de 1000 eutanásias involuntárias por ano na Bélgica. Pessoas doentes entram em alguns hospitais com medo de serem eutanasiadas contra sua vontade.
Uma vez  que uma pessoa pode pedir e obter uma eutanásia sem consultar ninguém da sua família, isso tem criado grandes tristezas e tensões em certas famílias.
Na Bélgica a lei foi aprovada há 16 anos. Afinal que tipo de mudança no  pensamento se deu na sociedade, ou nas pessoas em geral com a aprovação da eutanásia? Será que o povo belga tornou-se diferente por causa dessa aprovação? Houve alteração nos valores e atitudes em geral?
Michel Ghins considera que sim, houve mudanças no papel do médico, o relacionamento com a morte  alterou-se profundamente e também com uma rapidez surpreendente. A eutanásia aparece como a solução mais humana para muitos em casos de sofrimentos importantes. Na Bélgica, não é necessário estar em fim de vida para ter acesso à eutanásia. Os sofrimentos psicológicos também podem ser levados em conta. E o paciente tem sempre o direito de recusar tratamentos apropriados que poderiam melhorar seu estado e aliviar os sofrimentos. Se a liberdade individual é o valor supremo, e se cada indivíduo está em posição de avaliar por si mesmo o caráter insuportável do seu sofrimento, estamos pouco a pouco a caminhar em direcção à eutanásia a pedido. Se a liberdade individual é o valor que tem precedência sobre todos os outros valores, é natural que a sociedade evolua nesta direção.
Para muitos, a vida por si mesma deixou de ter valor. O que tem valor, é uma vida agradável, rica de experiências interessantes, isenta de sofrimentos, afetivamente satisfatória. O que se chama de qualidade de vida. Esse tipo de valor é veículado pela publicidade e o capitalismo liberal. O que conta é o prazer, e o prazer é antes de mais nada evitar frustrações, satisfazer seus desejos e portanto consumir. Este tipo de mentalidade é em harmonia com a perseguição do lucro. Para simplificar, quem tem uma vida sóbria consome menos. O que importa é a qualidade de vida, sendo a qualidade formatada pelos interesses do grande capital que incentiva à geração de lucros através de todo tipo de consumo."
*Michel Ghins, é Professor de Filosofia na Université de Louvain

quarta-feira, 28 de março de 2018

Testemunho de Professora Hospitalar, por Isabel Almeida

Há onze anos decidi alterar o rumo à minha vida profissional, não foi uma mudança radical, mas implicou a mudança de estabelecimento escolar. Deixei de estar num sistema “convencional” e passei a lecionar numa escola inserida num contexto hospitalar. 

Os primeiros quinze dias foram muito duros. Todos os dias chorei, pensei que aquele tinha sido o maior erro e que não iria aguentar a pressão. Sempre o medo instalado de não conseguir obedecer ao currículo imposto pela tutela. O medo de não cumprir a planificação e acima de tudo não conseguir atingir objetivos. O problema é que a população discente não me permitia seguir esta formalidade. Não me permitia alcançar resultados mensuráveis. O tempo passou, cresci, amadureci, adaptei-me a uma realidade dura e que se vislumbrava e vislumbra diferente dia após dia.
Desde que sou gente que sonhei ser Professora. Permitam-me que utilize o “P” maiúsculo. Só quem sente esta profissão sabe que um professor só é Professor se o for com “P” maiúsculo. Eu quero ser Professora! Tenho em mim que me esforço por assim ser. Professora! 
Sou humana, falho. Há dias em que vou trabalhar cansada, sem vontade e que me apetece tudo menos entrar naquele velho edifício, obsoleto e fétido. Normalmente nunca vou no elevador, opto por subir as escadas, mas também há alturas em que as pernas pesam e apetece-me fugir. Nunca sei o que me espera… Aprendi: “Um dia de cada vez”, a vida ensinou-me que é assim. É assim na minha vida profissional e pessoal. Continuando, subo as escadas e tiro a chave para abrir a porta. Entro na sala. É assim há onze anos. A sala cheira a escola. Como adoro o cheiro da escola. A escola para ser escola, tem de ter alunos! Uma escola em período de férias letivas não tem cheiro, não tem alegria. Faltam os seus protagonistas. Faltam as crianças, faltam aqueles olhos brilhantes e ávidos por aprenderem.
A minha escola é diferente. Uma única sala. Tudo muda quando entro na sala, tudo muda quando vou às enfermarias e contacto com as crianças. Tudo muda quando elas não podem vir à sala (escola) e sou eu que vou às enfermarias onde elas se encontram em isolamento, confinadas a um quarto e a uma cama. Tudo muda quando procuro dar um novo sentido aos que, embora crianças, a vida se lembrou de lhes pregar uma partida! Pregou uma partida a eles e às famílias que tantas vezes se encontram perdidas à procura da normalidade que lhes fugiu sem darem por isso. Tudo muda. O meu cansaço vai embora, as pernas ficam leves, já não me apetece fugir. Sei que tenho de estar ali! Sei que aquela foi a minha escolha e que a minha escolha foi acertada. Sei que os meus alunos dificilmente me vão permitir cumprir as planificações, alcançar objetivos. Mas sei que os meus alunos me permitem ser Professora e ser Professora no hospital significa ensinar e aprender. Diria que aprender mais do que ensinar. Aprender a amar, aprender a rir, aprender a chorar, aprender a ser mais Pessoa. Aprender a ser mais Professora.
Vivi nos últimos 4 meses momentos únicos. Acredito que ensinei, mas também aprendi. Acredito que não atingi objectivos mensuráveis, mas não estou preocupada com isso.
Acredito que cresci, acredito que a esperança aquece a alma e o coração. Acredito que a vida é muito injusta. Acredito que ao mesmo tempo que ensino Português, Matemática… também posso pegar no garfo e ajudar a comer! Aprendi, mais uma vez, que as crianças são aqueles que mais nos ensinam.
Finalmente, aprendi que o melhor de ser Professora é sentir uns braços magros, num corpo frágil, marcado pela doença, que me enlaçam e me enchem de carinho. Aprendi que mesmo no meio do sofrimento há sempre espaço para a ternura, para o amor! No meio do sofrimento há quem tenha força para chorar e dizer: “Professora, vou ter muitas saudades tuas! Professora como vou ficar sem ti?” Sou uma privilegiada. Agradeço a Deus a oportunidade que me dá todos os dias. Ser Professora. Obrigada.
Isabel Almeida, Professora no Hospital de Estefânia