sexta-feira, 20 de julho de 2018

Avaliação da lei fim de vida em França: o IGAS (Inspection générale des affaires sociales) recomenda alterações limitadas


O IGAS publicou, no dia 12 de Junho de 2018, o seu relatório sobre a avaliação da lei fim de vida de 2016: trinta recomendações são avançadas para tornar a aplicação da lei mais homogénea e reforçar o respeito pelas pessoas mais vulneráveis.
Este relatório, muito esperado, foi solicitado pela Ministra da Saúde em Novembro de 2017 tendo por objetivo «avaliar a aplicação da lei, nomeadamente, no que diz respeito à formação dos profissionais de saúde, à aplicação das diretivas antecipadas, à designação das pessoas de confiança, ao acesso aos cuidados paliativos em todo o território e à implementação da sedação profunda em instituições sanitárias, em HAD (Hospitalisation à domicile) mas também em EHPAD (Établissement d'hébergement pour personnes âgées dépendantes) ou ao domicílio.»
O relatório convida a fazer «alterações limitadas nos textos legislativos e regulamentares em vigor» lembrando que «a estabilidade do quadro jurídico é uma condição para a sua boa aplicação pelos profissionais e pelas pessoas em fim de vida, a sua família e pessoas chegadas». Segundo os autores do relatório, «uma dinâmica encorajadora do respeito pelo fim de vida e pela cultura paliativa foi impulsionada pela lei de 2 de Fevereiro de 2016» cujos textos regulamentares foram rapidamente adotados. Apesar do curto prazo para avaliar a aplicação da lei, apenas dois anos, este bom trabalho insere-se na vontade de melhorar o apoio em fim de vida, sem ignorar a complexidade das situações.
Os autores do relatório sublinham, em particular, a urgência de criar um sistema mais fiável de recolha dos dados sobre as decisões médicas em fim de vida, nomeadamente «o panorama específico para as decisões de limitações ou de cessação de tratamento assim como para as sedações profundas e continuas até ao falecimento» no plano nacional. Constatando a carência de investigação sobre o fim de vida, o relatório, recomenda que, a temática «Cuidados paliativos e fim de vida» seja consolidada nos pedidos de projetos nacionais e nos programas dos grandes organismos de investigação. Observando estas deficiências, assim como, um problema de governação do Centre National des Soins Palliatifs et de la Fin de Vie, a missão recomenda uma audição deste Centro criado pela lei de 2016 «para contribuir para um melhor conhecimento dos cuidados paliativos, mas também para o seguimento e a avaliação das políticas públicas em matéria de fim de vida».
Apesar de terem sido tomadas medidas nestes últimos anos em matéria de formação em cuidados paliativos, estes esforços devem continuar de forma a que a cultura paliativa se possa difundir e que as desigualdades regionais diminuam. No seguimento dos relatórios e estudos efetuados nestes últimos meses, o relatório insiste na necessidade de reforçar os cuidados paliativos nos EHPAD.
As diretivas antecipadas e a pessoa de confiança
As pessoas designam mais facilmente uma pessoa de confiança do que redigem as suas diretivas antecipadas. Apesar de a recolha destas últimas «poder ser melhorada» e do seu número ser ainda reduzido, os autores deste relatório lembram que elas não obrigatórias. «A divulgação dos formulários, mesmo de diferente qualidade, deve ser incentivada». Alguns pacientes preferem formulários simples, enquanto que outros sentem mais confiança em formulários mais precisos. A maioria dos formulários é redigida em papel normal. O teor rígido das diretivas previsto na lei é na realidade limitado por redações pouco precisas. No entanto, «a maioria dos profissionais de saúde interrogados (médicos, cuidadores), liberais e hospitalares, concordam em afirmar que o diálogo sobre o fim de vida com os pacientes e os seus próximos abriu-se, reforçou-se e melhorou uma vez que a lei de 2 de Fevereiro de 2016 permitiu reduzir os tabus e ter mais margem de manobra para falar de sofrimento, de acompanhamento e de conforto, sedação e de adaptação no tempo».

A difícil qualificação das situações de obstinação irracional
As informações do terreno indicam a deteção particularmente complexa das situações de obstinação irracional: «o carácter inútil ou desproporcionado dos tratamentos em causa, deixa uma margem de interpretação ou de incertezas em função das situações.» Como sublinham os autores, o trabalho reside «na adaptação a cada situação e na fluidez da circulação da informação de forma a facilitar o consenso». Quando a iniciativa das decisões dos limites ou cessações de tratamento pertence normalmente, na prática, à equipa médica, os pacientes ou as famílias opõem-se, convencidos do seu interesse persistente: «a medicina fica assim se presa no seu próprio discurso sobre o progresso médico.»
Os casos em litígio mais atuais são citados: os casos das jovens Marwa e Inès mas também o caso de Vincent Lambert. O relatório recomenda para estas situações a criação de uma plataforma telefónica que permita que os profissionais no terreno que sejam confrontados com situações de litígio, possam aceder a um consultor exterior competente, um profissional da mediação ou um especialista em questões éticas.
Em particular, o reconhecimento da alimentação e hidratação artificiais como um tratamento que pode ser cessado revela ser «delicado de executar na prática». Isto diz respeito especialmente às pessoas mais vulneráveis como os doentes de Alzheimer ou os pacientes em situação de consciência mínima. Como referiu a Union nationale des traumatisés crâniens (UNAFTC), a alimentação e a hidratação artificiais «fazem parte integrante do projeto terapêutico e de vida destes pacientes e não podem ser consideradas como dependendo de uma obstinação irracional salvo por vontade contrária expressa pelo paciente através das diretivas antecipadas ou transmitida pela pessoa de confiança ou, na sua falta, pela família ou pessoas próximas ou resultante da ocorrência de complicações.»

A sedação profunda e contínua até ao falecimento
Os pedidos são raros de acordo com os centros hospitalares consultados. Um inquérito quantitativo lançado pelo Centre National des soins Palliatifs et de la Fin de Vie foi contestado pela SFAP (Société Française d’accompagnement et de soins palliatifs). Dados mais precisos deverão ser conhecidos no final do ano.
A Haute Autorité de Santé (HAS) publicou no dia 15 de Março de 2018 as suas recomendações de boa prática para a aplicação da «sedação profunda e continua mantida até ao falecimento», recomendações que vieram esclarecer os seus contornos. Os autores esforçaram-se por distinguir bem este tipo de sedação, que se mantém excecional, da eutanásia que tem por objetivo provocar a morte. De acordo com algumas equipas interrogadas, «este novo direito permitiu abrir o diálogo com os pacientes e também, por vezes, conseguir evitar os pedidos de eutanásia.». Mas, globalmente, existem várias dificuldades relacionadas com «a complexidade sentida pelas equipas de cuidados em apreciarem os conceitos essenciais como os do sofrimento resistente, sofrimento insuportável, prognóstico vital de curto prazo e de aplicar, de forma adequada, os critérios de avaliação existentes…»
Em conclusão, os autores do relatório lembram que «é necessário não esquecer o carácter profundamente singular, doloroso e complexo de cada situação de fim de vida.»
Leia no original aqui.


quarta-feira, 18 de julho de 2018

A falta de rigor informativo da RTP sobre o tema da eutanásia foi denunciado por José Ribeiro e Castro


No passado dia 22 de Abril o Telejornal da noite da RTP1 emitiu uma peça informativa sobre eutanásia na Bélgica, onde  refere que a Bélgica é um dos poucos países europeus onde a morte assistida está regulada, mesmo para menores de idade. "Basta revê-la para verificar de imediato que a peça transmite uma visão unilateral, claramente enviesada e sem qualquer contraditório, sobre uma matéria muito sensível. A RTP sabe bem que esta matéria é muito divisora das sociedades, como a própria RTP1 havia dado conta numa outra peça, emitida há dois anos. Em vários países a morte assistida é legal. No caso da Bélgica, a polémica voltou a instalar-se devido a uma legislação que é considerada, por muitos, demasiado permissiva. Esta outra peça de 2016 não foi perfeita, não ouviu os dois lados. Mas, ao menos, deu nota da polémica", segundo José Ribeiro e Castro, advogado, que como telespectador enviou esta nota para apreciação do Provedor do telespectador da RTP. Esta reportagem foi transmitida numa altura de debate e deliberações no plano legislativo. Neste contexto, a emissão de peças manifestamente parciais e enviesadas, o que assume particular gravidade, deve ser entendida como acto de propaganda, considera o advogado. O ponto n.º 1 do Novo Código Deontológico dos jornalistas, referendado pela classe em 2017, dispõe: «O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.» Para José Ribeiro e Castro o Código não foi observado, como cumpria. Entre outras normas legais, cumpre à RTP «assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção.» - Lei n.º 27/2007, de 30 de Julho, Lei da Televisão , artigo 34º, n.º 2, alínea b). Embora esta norma se refira ao conjunto da actividade informativa e não a cada peça ou serviço individualmente, marca um espírito e uma linha que estão traduzidos noutras normas legais, estatutárias e deontológicas e devem ser sempre tomados na devida conta. A notícia de 22 de Abril não respeitou o pluralismo, nem a isenção e, por conseguinte, também não observou o rigor. Esta matéria da eutanásia, ao contrário do que a peça da RTP em 22 de Abril afirma, mantém-se controversa na Bélgica e na vizinha Holanda, onde a questão é um pouco mais antiga que na Bélgica. Se quisesse servir os seus deveres de pluralismo, rigor e isenção a RTP teve excelente oportunidade para o fazer, se tivesse coberto o importante colóquio internacional "Eutanásia e Cultura do Cuidado", que decorreu na Universidade Católica, em Lisboa, no passado dia 23 de Abril. Além de especialistas portugueses, houve, aqui, a participação destacada do Prof. Theo Boer, holandês, que chegou a participar nos conselhos de administração da eutanásia, mas que se afastou por um conjunto de factos sobre que depõe com rigor e conhecimento directo.
A RTP, deixou de fora a oportunidade de reportar o outro lado. As realidades belga e holandesa são muito próximas. José Ribeiro e Castro pediu ao Provedor do telespectador da RTP, Jorge Wemans, que o esclarecimento destes factos pelos modos adequados, no âmbito institucional e funcional da RTP. A peça da autoria do jornalista Duarte Valente sobre a eutanásia na Bélgica emitida no Telejornal de dia 22 de Abril de 2018 foi objecto de análise pelo Provedor do telespectador da RTP. Estas críticas chegaram ao Conselho de Opinião que as remeteu, a 9 de maio, ao Provedor do telespetador. As críticas do telespetador acusavam o trabalho de Duarte Valente de transmitir “uma visão unilateral, claramente enviesada e sem qualquer contraditório”  e, assim, não respeitar “o pluralismo, nem a isenção e, por conseguinte, também não observar o rigor” obrigatório na prática jornalística e em particular no Serviço Público de Televisão. Às questões formuladas pelo Provedor, o jornalista Duarte Valente respondeu da seguinte forma: "o objetivo da reportagem não era o de descrever o debate em torno da eutanásia na Bélgica,  mas contextualizar o processo que levou à criação de legislação reguladora deste procedimento médico. Daí que se tenha optado por ouvir o médico que foi pioneiro no país, um médico que assiste pacientes com doenças terminais e um sociólogo que estuda estes casos. Na reportagem começa por dizer-se que o debate público e político demorou quase 3 décadas até se chegar a um acordo sobre o texto legislativo. Os intervenientes são claros ao dizer que a eutanásia é um recurso acessível aos doentes, mas não é o único, fazendo parte de um conjunto que inclui os cuidados paliativos. Sobre a questão levantada sobre a reportagem ter sido “aceite como estando pronta a ser emitida”, permita-me referir que esta reportagem esteve longos meses (quase 1 ano) em Lisboa à espera de emissão, o que permitiria uma análise detalhada de qualquer dos responsáveis editoriais. Nunca me foi colocada qualquer questão relacionada com os pontos levantados pelo Provedor.”
O Provedor conclui que a reportagem alvo de crítica situa toda a controvérsia a propósito da eutanásia exclusivamente no período anterior à aprovação da legislação que a legalizou (2004). Depois dessa data as divisões sobre a matéria que atravessam a sociedade belga são subestimadas e reduzidas à afirmação de que a eutanásia é “genericamente bem aceite” tendo apenas este quase consenso sido abalado pela polémica sobre o recente alargamento da legalização do pedido de morte assistida a menores de idade (2014). Ora tal não é factualmente verdadeiro, como se pode verificar através de simples pesquisa na web. Movimentos, tomadas de posição de várias origens e quadrantes e manifestos contra a eutanásia estão nela largamente documentadas. Tal como críticas a eventuais abusos na aplicação da legislação; Por outro lado, ao longo da referida reportagem não é recolhida qualquer opinião contrária à legislação despenalizadora da eutanásia, apenas se dá voz aos seus defensores.
O Provedor do telespetador reconheceu o fundamento à queixa do telespetador e qualifica a reportagem como não conforme à observância de todos os princípios deontológicos consignados no Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, nomeadamente no que se refere à obrigação de “relatar os factos com rigor e exatidão” e “Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso” [Art.1º].
Jorge Wemans concluiu que a peça em causa transmitiu uma imagem enviesada e distorcida quanto à relação da sociedade belga com a prática da eutanásia no seu país. O que, atendendo ao momento específico em que foi emitida, aumenta a gravidade da sua inclusão no principal jornal da RTP1. O rigor, a inclusão de contraditório e a isenção que devem manifestar-se em todas as peças informativas, são, se é possível, ainda mais exigíveis em matérias sobre questões e temas polémicos. O Provedor, ainda que não tendo qualquer razão para crer que tenha existido dolo neste caso concreto, não pode deixar de recomendar à Direção de Informação uma atenção acrescida à verificação cuidadosa daqueles pressupostos do bom jornalismo em todos os trabalhos sobre assuntos objeto de controvérsia, disse Jorge Wemans, Provedor do telespetador da RTP.
Aliás, esta falta de rigor na informação,  da apresentação do contraditório, foi geral no debate da eutanásia. De realçar ainda que na semana da votação dos projectos de lei na AR teve mais destaque nos media o tema da crise interna do Sporting Clube de Portugal, do que um tema tão importante para a vida dos portugueses, como a eutanásia e o fim de vida.