quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Eutanásia: as graves consequências de uma morte anunciada, por Tugdual Derville

A eutanásia tão mediatizada de Anne Bert não pode deixar ninguém  indiferente. Todos os  doentes com graves patologias degenerativas e incapacitantes  merecem ser escutados, apoiados e acompanhados.  E o dramático desfecho da doença de Anne Bert, que nos entristece, não pode ser um porta-voz de outros doentes, das suas famílias e de todos os profissionais e voluntários que cuidam deles.

Nós assistimos a uma teatralização de uma  situação pessoal dolorosa que foi feita até ao anúncio de um livro que deveria ser publicado depois de um suicídio assistido  programado na  Bélgica, todo um cenário para o qual os Franceses foram involuntariamente conduzidos, sem filtro. Não se trata aqui de julgar uma pessoa mas, nós, temos o dever de refletir para compreender o alcance da sua derradeira decisão que, tendo sido tão amplamente anunciada, nos faz duvidar sobre a existência de uma verdadeira liberdade no momento da sua morte.   Será que ela poderia ter desistido e se retratado sem dececionar aqueles que criaram uma  personalidade  emblemática para a sua reivindicação,  sem esquecer também o seu editor?
 Mas, é sobretudo sobre o impacto deste suicídio nos doentes, suas famílias e seus cuidadores, que nós nos devemos concentrar. Permitir que se oiça dizer que existe uma «coragem de morrer», numa circunstância idêntica, significa ocultar a coragem de viver. É muito grave deixar que as pessoas fragilizadas pensem que é preferível morrerem a viverem, que é melhor a eutanásia que os cuidados e a investigação. Qualquer pessoa precisa de ser acompanhada e apoiada nessas situações de grande dependência. A mediatização de uma  situação que recusa a dependência oculta os testemunhos exemplares daquelas pessoas que o assumem e revela a exclusão da  vulnerabilidade que caracteriza a nossa cultura.
Fala-se do necessário exílio na  Bélgica, mas, o que é chocante é a desigualdade, não perante a morte, mas  perante a vida: no que diz respeito ao acompanhamento das pessoas, ao acesso aos cuidados paliativos. Iremos nós fazer tudo para lutar contra a dor, contra os sofrimentos morais, sociais e espirituais que existem no fim de vida? Iremos nós empregar os meios necessários ou caminhamos para uma solução de facilitismo que é a de  "apagar" as pessoas?
A fronteira que não podemos ultrapassar para conseguirmos viver em sociedade, é a interdição de matar. O ponto de partida  é recusar tanto a obstinação terapêutica como a eutanásia. Esta é a escolha humana que fez a França. O risco seria de dificultar o imenso trabalho da investigação médica  na luta contra as doenças, em especial, aquela que afetava esta mulher e na luta contra a dor.
As pessoas mais vulneráveis ensinam-nos muito sobre a humanidade. Não é aceitável que essas pessoas sejam julgadas consoante a sua suposta utilidade. O olhar que nós colocamos sobre elas determina frequentemente o olhar que eles colocam sobre si próprias.
Uma sociedade que considerasse que, a eutanásia é uma obrigação para uma pessoa gravemente doente, perderia a sua humanidade. 
Esta é a razão pela qual esta mediatização nos deve conduzir a um exame de consciência, sem nos deixarmos enganar por aqueles que querem lucrar ao forçar o governo a curvar-se para uma sociedade da eutanásia e do suicídio assistido.
 Tugdual Derville, delegado geral da Associação Alliance Vitta

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Acerca da Eutanásia e a Dignidade Humana, por Michel Renaud*, parte III

Não será bastante incoerente a posição que – no primeiro dos doze colóquios programados sobre a eutanásia – foi expressa por um dos oradores, quando afirmou que, embora tendo assinado o documento a favor da eutanásia, ele próprio faria sempre objecção de consciência e nunca a praticaria? Quando se recusa praticar um acto médico em virtude de uma objecção de consciência, qual será o sentido de considerar o mesmo acto como moralmente bom para outros? Será a objecção de consciência em geral apenas uma iniciativa de conveniência pessoal ou uma tomada de posição sobre a dimensão ética do acto? Neste último caso e fora da situação de conveniência pessoal, se alguém se recusa a praticar um acto que julga moralmente repreensível, mas considera que outros o podem fazer, qual será o sentido desta posição? Será que este mal é avaliado como não constituindo para a sociedade um mal tão grave que justifique uma proibição política? Contudo, no caso da eutanásia, é difícil, para quem toma a iniciativa de dar a morte, considerar que se trata de um acto finalmente inócuo ou sem graves consequências! Também a esse respeito as opiniões divergem, embora se possa afirmar que, de todo o modo, está errado colocar a prática da eutanásia na categoria de prestação de cuidado. 
Abordemos brevemente a eutanásia administrada por compaixão, a título de ajuda ao doente terminal. A questão central a esse respeito constitui o pomo da discórdia entre adversários e partidários da eutanásia. Tudo acaba por repousar numa determinada compreensão da dignidade humana. Para os primeiros, os adversários, a dignidade humana é ontológica, isto é, nunca um ser humano pode perder a sua dignidade, porque esta lhe é intrínseca, qualquer que seja a situação concreta de diminuição física ou mental na qual se encontra. O ser humano nunca perde a sua dignidade enquanto membro da espécie humana. Esta tese está na base da toda a civilização na qual vivemos. Para os segundos, os proponentes, a dignidade humana é um dado que se pode chamar fenomenológico, isto é, que depende também fortemente das situações concretas nas quais alguém se encontra e que se avaliam pelo critério de sofrimento físico ou psicológico, assim como pelo grau de dependência física, mental, etc. Segue-se que, para esta corrente, é legítimo afirmar que, no fim da sua vida ou mesmo no decurso dela, uma pessoa pode ficar com uma vida sem nenhuma dignidade. Deste modo, a grande questão do debate sobre a eutanásia reside na oposição entre duas maneiras de entender a dignidade humana, aparentemente incompatíveis. É possível, assim, que o diálogo entre as duas posições se transforme num diálogo de surdos. 
Contudo, a questão subjacente não pode ser escondida: a partir do momento uma situação existencial ou um determinado comportamento deve ser considerado como acarretando uma perda de dignidade justificando a prática de eutanásia? Tal como já foi referido acima nas questões prévias, o deslize não é irreal, no sentido em que, ao ser aceite, a eutanásia abre a porta a actos de eutanásia cada vez mais afastados da doença terminal: eutanásia por motivos psiquiátricos, por motivos de sofrimento psicológico, entre outros casos. O que se considera aqui como deslize aparece e aparecerá de facto como justificado, do ponto de vista da compreensão da dignidade humana entendida como gradual e sujeita à análise de circunstâncias da existência julgadas degradantes. 
Acrescenta-se agora uma questão pertinente nesta perspectiva: não será também justificável a prática da eutanásia a vidas consideradas como moralmente desprovidas de dignidade em função da realização de actos particularmente nefastos? Ora, foi precisamente essa a justificação subjacente à pena de morte, nomeadamente a aceitação do carácter relativo da dignidade humana: a prática de certos actos considerados como imorais e inaceitáveis aos olhos da lei pode fazer perder a dignidade humana, sem mais nada, e legitima então a pena de morte. Ora, o progresso ético que a abolição da pena de morte instaurou consistiu em reconhecer que nada pode fazer perder a dignidade ontológica do ser humano, nem sequer a indignidade ética dos actos praticados. Com efeito, aquém da dignidade da vida moral está a dignidade de cada ser humano considerado como membro da grande família humana. 
Excerto do artigo " Acerca da Eutanásia e a Dignidade Humana", de Michel Renaud* faz parte do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.