Publicamos artigo do Professor Catedrático de Direito, Jorge Miranda, publicado na Revista O Direito nº 155 de 2023.
Professor Catedrático das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica desde 1985, foi deputado à Assembleia Constituinte (1975-1976) e membro da Comissão Constitucional, órgão antecedente do Tribunal Constitucional (1976-1980) e desempenhou funções diretivas nas duas Faculdades e foi consultor constitucional em vários países.
A Constituição de 1976 – tal como a Constituição alemã de 1949 –
declara, no art. 1.º, a República baseada na dignidade da pessoa humana1 2
.
Reitera-o, no art. 13.º, agora seguindo o art. 3.º da Constituição italiana de
1947 – “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social”.
No art. 26.º, n.º 2:
“A lei estabelecerá garantias efetivas contra a utilização abusiva ou contrária à
dignidade humana de informações relativas às pessoas e familiares.
No art. 59.º,
n.º 1, alínea b): “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça,
cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,
têm direito à organização do trabalho em condições socialmente digni0cantes,
de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade
pro0ssional com a vida familiar”.
No art. 67.º, n.º 2, alínea e) “Incumbe, designadamente ao Estado, para proteção da família: (…) b) Regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana”.
No art. 206.º: “As audiências dos tribunais são públicas salvo quando o próprio
tribunal decida o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da
dignidade das pessoas”.
2.
O art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclama
e explicita esta conceção: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade”.
Dotados de razão e de consciência – eis o denominador comum a todos os
homens e mulheres em que consiste essa igualdade.
Dotados de razão e consciência
– eis o que, para além das diferenciações geográficas, económicas, culturais e
sociais, justifica o reconhecimento, a garantia e a promoção dos direitos fundamentais. Dotados de razão e consciência – eis por que os direitos fundamentais,
ou os que estão no seu cerne, não podem desprender-se da consciência jurídica
das pessoas e dos povos.
Devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade – eis o horizonte
de esperança aberto ou proposto a todos os seres humanos.
Ou a construção de um país livre, justo e solidário, como se lê no preâmbulo da
nossa Constituição (no texto atual)3
.
3. Característica da pessoa – como sujeito e não como objeto, coisa ou
instrumento – a dignidade traduz-se num princípio que coenvolve todos os
princípios relativos aos direitos e aos deveres frente ao Estado e a quaisquer
entidades de Direito internacional.
Limite transcendente do poder constituinte, não tem, por isso, de aparecer
no quadro dos limites materiais de revisão constitucional (art. 288.º)4
.
A dignidade da pessoa humana é da pessoa individual e concreta, não de
um ser ideal e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que o ordenamento jurídico considera insubstituível e irrepetível.
4. A dignidade da pessoa humana compreende, antes de mais, a dignidade
da vida. Toda a vida humana tem um valor em si própria e toda a vida humana
possui o mesmo valor.
A vida humana é inviolável (art. 24.º da Constituição).
5. Donde, a inexistência, em caso algum, de pena de morte (art. 24.º, n.º
2) e, em coerência, não poder haver extradição quando, segundo o Direito do
Estado requisitante, exista pena de morte ou outra pena de que resulte lesão
irreversível da integridade física (art. 33.º, n.º 6).
Donde, serem vedadas a eutanásia ativa e a eutanásia passiva. Como escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, a Constituição não reconhece
qualquer vida sem valor de vida, nem garante decisões sobre a própria vida5
.
Doutro ângulo, Mafalda Miranda Barbosa: “A vontade não pode arvorar-se
no valor superior à mercê do qual a própria pessoa claudica. Se a vontade (a
alicerçar o pedido de morte), na sua subjetividade quantas vezes insindicável,
fosse o vetor justi0cador do comportamento, então, deixaríamos de ter um critério de determinação de quais os pedidos que são ou não legítimos. Advogar
a licitude da morte a pedido redundaria, afinal, na desconsideração da própria
dignidade da pessoa, que passaria a ser disponível e contingente no seio do
ordenamento jurídico.
Tal posição corresponderia a elevar a (mal compreendida) autonomia a decisor absoluto, donde deixaria de haver qualquer limite
para qualquer pretensa limitação voluntária dos direitos de personalidade (…).
Se, ao invés, se tentar estabelecer critérios objetivos de determinação da licitude do pedido de aniquilação da vida, então, o fator determinativo não será,
propriamente, a vontade, mas o reconhecimento de que há vidas que não são
dignas de serem vividas” 6 7
.
Sem porem em causa a ideia da dignidade da vida, mas considerando uma
dualidade de sentidos e de implicações, citem-se Ronald Dworkin(8) e Jorge
Pereira da Silva(9) numa linha problematizante.
6. Da eutanásia distingue-se o testamento vital, ou seja, a declaração de
vontade antecipada no sentido de não sujeição a tratamentos médicos que não
evitem a morte (tratamentos arti0ciais, fúteis, inúteis, desproporcionados, em
fase experimental, ou próximos de ensaios clínicos) como especi0ca a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (com as alterações vindas da Lei n.º 49/2018, de 14
de agosto).
7. Salientem-se como pontos diferenciadores:
a) O testamento vital (ou diretiva antecipada de vontade) é uma afirmação
da própria pessoa, individual e livre10; a eutanásia assenta num acordo de
vontades entre o doente e o médico;
b) O testamento vital é anterior à doença, sem pre0xação de data e, ao 0m
de cinco anos, caduca (art. 7.º da Lei); a eutanásia ocorre num tempo
perturbado de sofrimento do doente;
c) Ainda que a razão de ser possa ser análoga, o conteúdo das decisões é
diverso;
d) A observância da ética médica tem que se impor em todas as situações,
com maior rigor (se possível) na eutanásia;
e) Tem de ser sempre garantido o direito de objeção ou de consciência
(art. 41.º, n.º 6 da Constituição e art. 9.º da Lei n.º 25/2012, de 1 de
julho), embora só no limite no testamente vital.
8. Poderia, porventura, aduzir-se contra a recusa da eutanásia não constar
das incumbências do Estado, à luz do art. 64.º, n.º 2, alínea c) da Constituição,
a de organização de cuidados paliativos.
Sem razão, contudo, porque os direitos fundamentais consignados na
Constituição não excluem quaisquer outros constantes da Lei ou de regras
aplicáveis do Direito internacional (art. 18.º, n.º 1)11. E, porque mesmo inexistindo (por enquanto) preceito a prever cuidados paliativos, eles decorrerem da
tarefa fundamental do Estado de promover o bem-estar e a qualidade de vida
[art. 9.º, alínea d).
9. Para além da unidade do sistema, o que conta é a unidade da pessoa 12
.
A conjugação dos diferentes direitos e das normas constitucionais, legais e internacionais a eles atinentes torna-se mais clara a essa luz assim como o caráter
inalienável e imprescindível dos direitos fundamentais.
O «homem situado» do mundo plural, conflitual e em acelerada mutação
do nosso tempo encontra-se muitas vezes dividido por interesses, solidariedades e desafios discrepantes; só na consciência da sua dignidade pessoal retoma
unidade de vida e de destino. É aí que reside a jusfundamentalidade como
critério para a admissibilidade de outros direitos afora os inseridos no texto
constitucional13
.
Leia o artigo na íntegra aqui comas respectivas notas bibliográficas.