quarta-feira, 12 de abril de 2017

Eutanásia e respeito pela dignidade*



Comecemos por considerar a relação entre eutanásia e dignidade. No debate em torno da eutanásia, os seus defensores argumentam que temos o direito a morrer dignamente. Os críticos da eutanásia, por seu lado, argumentam afirmando que admitir a eutanásia é atentar contra a dignidade da pessoa que a pede ou para quem ela é pedida.  O que sustenta as duas argumentações? No primeiro caso, defende-se a ideia de que a vida humana não é sempre digna e, portanto, não é inviolável. O que se reivindica é precisamente a revogação do princípio da inviolabilidade da vida humana. A vida humana é inviolável ou indisponível – digna – em certas circunstâncias. Fora delas, não é valiosa, é absurda, já não faz sentido, deve pôr-se-lhe termo ou pelo menos deve poder-se pôr-lhe termo. O tempo vivido nessas circunstâncias será um tempo carente de sentido humano, absurdo. 
Por seu lado, os críticos da eutanásia sustentam que a primeira expressão da dignidade é a indisponibilidade; ora, isso significa que não é possível, simultaneamente, defender a dignidade humana e atentar contra a vida humana. No primeiro caso – o dos defensores da eutanásia –, a dignidade é algo que não se tem sempre e que, no final da vida, se corre o risco de perder. Não é algo que nos caracteriza por sermos homens, sejam quais forem as vicissitudes ou as limitações que cada vida enfrente, é algo que depende, para se afirmar, dessas vicissitudes e limitações, e que diminui à medida que estas últimas aumentam. Dito de outro modo, a dignidade não é um estatuto natural que há que reconhecer a todos os homens, mas outra coisa: um estatuto adquirido ou, no limite, concedido e que pode, portanto, ser retirado. O discurso a favor da eutanásia não deixa lugar a dúvidas: há vidas que não vale a pena serem vividas. Há circunstâncias em que a vida já não tem sentido e em que portanto também não tem sentido protegê-la. Dito de outro modo: há circunstâncias nas quais viver não é um bem, mas um mal. Algo que deve ser anulado. Em tais circunstâncias, como é evidente, a voluntariedade do sujeito da eutanásia deixa de ser relevante.   O que aqui se reivindica é, como referimos, o direito a desproteger a vida humana. Porque a vida deixou de ser valiosa ou porque deixou de ser vista como tal. No primeiro caso, o que se afirma é que há vidas humanas não valiosas, indignas. Nesse caso, suprimi-las não é suprimir nada valioso. Caberia, no entanto, perguntar: a quem compete determinar quando é que uma vida humana tem valor e quando é que deixa de ter valor? Qual o limiar abaixo do qual deixa de ser necessário garantir condições de vida dignas a uma vida por ela ser digna, e passa a não valer a pena nenhum esforço porque ela carece de dignidade? No segundo caso – quando do que se trata é de renunciar à vida, de renunciar a si, porque a própria vida ou o próprio ser não se vêem como valiosos –, a questão que se coloca é a seguinte: o facto de alguém não reconhecer a sua própria dignidade ou de ter medo de a perder autoriza-nos a tratá-lo como se efectivamente não a tivesse? Este facto deve traduzir-se num direito?  A afirmação de que o homem é sujeito de direitos – a própria formulação dos direitos humanos (e, portanto, também o sentido de princípios como os do respeito pela dignidade, pela autonomia, etc.) – parece significar que os direitos se possuem pelo que se é e não por alguma concessão de um grupo de seres humanos a outros seres humanos. Os indivíduos humanos são sujeitos de direitos por pertencerem à comunidade humana, e pertencem-lhe por direito próprio, não por serem adoptados por ela em certas circunstâncias. Mas, se é assim, há que reconhecer que a comunidade humana não tem competência para secundar a vontade de alguém que deseja pôr-se à margem dessa estrutura de acolhimento e de direitos que é a sociedade humana. Dito de outro modo, não temos competência para excluir nenhum homem da comunidade humana nem, portanto, possibilidade de secundar o desejo que possa sentir de se pôr à margem dessa estrutura interpessoal a que todos pertencemos por sermos homens. Se alguém o quiser fazer, terá que fazê-lo só, uma vez que todo aquele que se dispuser a ajudá-lo se encontra no interior da comunidade humana, que acolhe – tem de acolher – a todos, sem nenhuma discriminação, que seria sempre infundada. Isto significa que ninguém pode invocar o respeito pelo outro como sujeito ou agente livre para destruir o próprio sujeito da liberdade.   Mas, se é verdade o que se acaba de afirmar, haverá então que concluir, mais radicalmente, que não existe o direito a renunciar a si próprio, a renunciar à dignidade em nome da autonomia. Até porque, se existisse o direito a dispor da própria vida, seria quase inevitável que esse direito se transformasse num dever. Com efeito, se temos o direito a acabar com a própria vida – se renunciar à vida é um bem em determinadas circunstâncias –, então teremos de arcar com a responsabilidade total por todos os cuidados que a renúncia a exercê-lo poderá eventualmente implicar. Sobre cada um dos que renunciarem a exercer esse direito passará então a pesar consciência de estar a delapidar o “património familiar”, de estar a sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde, a ser um peso, e sobre ele recairá a responsabilidade de procurar a saída devida. Desta forma, a possibilidade legal da morte a pedido acaba por se traduzir no próprio dever de a pedir. Não o fazer seria então uma imoralidade, uma forma de insolidariedade, a que o Estado não teria de dar cobertura. As exigências da solidariedade invertem-se: não é a sociedade que protege a vida débil ou debilitada; é esta que passa a ter a obrigação de sair da frente.  

*Excerto do artigo "Os princípios bioéticos e o debate sobre a eutanásia" de Marta Mendonça, Professora de Filosofia da Universidade Nova

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