segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Análise ao projecto de lei do PS - II parte, por Michel Ghins, bioetico


Duas problemáticas vão ser examinadas. A primeira diz respeito às consequências da legalização da eutanásia para a família, o pessoal médico e a sociedade. A segunda prende-se com a verificação do caráter absolutamente livre e isento de pressões externas do pedido de eutanásia. É verdade que, especialmente quando o paciente está em situação de sofrimento extremo que não pode ser aliviado e em fim de vida, os familiares sofrem de ver uma pessoa querida num estado que eles julgam com toda razão não ser condizente com a sua dignidade humana. Como vimos, este sofrimento pode ser consideravelmente aliviado pela aplicação de cuidados paliativos adequados, que não são limitados ao doente, mas se estendem a toda sua família. Depois de uma eutanásia, principalmente quando esta última não foi anunciada à família próxima – o que pode acontecer em conformidade com o projeto de lei do PS – os parentes podem ter grandes dificuldades no processo de luto e sofrer de problemas psicológicos, de depressão que necessitam as vezes de um acompanhamento psicológico, e até psiquiátrico (tem casos na Bélgica).
Em relação ao pessoal de saúde, a legalização da eutanásia oferece uma solução a um encarado como um problema técnico: como suprimir a dor excessiva em todos os casos? A despenalização decorre assim da recusa de aceitar, tanto da parte do paciente quanto da parte do médico, que podem ter situações nas quais a medicina é impotente para aliviar certos sofrimentos extremos. Logo, para evitar de perder o controle, a última saída é pôr fim a vida do paciente, ao seu pedido. A exigência de suprimir todo sofrimento é atendida e a medicina é confortada no seu poder de dominar e controlar toda situação, porque é o médico que pratica a eutanásia. Mas, no desenvolver desse processo, perde-se o contato com o doente, com o ser humano que sofre, e que precisa ser acompanhado, ouvido, quando ainda vivo, com compaixão e amor. A legalização da eutanásia torna o médico um tipo de funcionário intimado a resolver problemas no quadro de uma medicina altamente técnica (Devos 2019). Não é surpreendente que, na Bélgica, a despenalização da eutanásia tem criado um mal-estar importante no corpo médico, também porque a eutanásia é proibida pelo juramento de Hipócrates (Beuselinck 2017).
A legalização da eutanásia envia uma mensagem grave a toda a sociedade. Em poucos anos, na Bélgica, onde a eutanásia foi despenalizada em 2002, a eutanásia veio a ser considerada como uma solução perfeitamente aceitável em condições cada vez mais alargadas, como demonstram os relatórios bienais da Commission fédérale de contrôle et d’évaluation de l’application de laloi relative à l’euthanasie. O número de eutanásias declaradas passou de 249 em 2002-2003 a 2357 em 2018. Estima-se que a metade das eutanásias não são declaradas. Isso indica que as alternativas à eutanásia no quadro de cuidados paliativos não são mais suficientemente exploradas e apoiadas. Não é excessivo afirmar que, na Bélgica, adespenalização tem causado o enfraquecimento da solidariedade humana e uma espécie de eutanásia do laço social, porque a eutanásia é menos difícil de ser aplicada do que um acompanhamento longo, exigente e custoso pelo corpo médico e a família.
A segunda problemática está relacionada com a verificação do princípio da autonomia da pessoa que faz pedido de eutanásia. A “exposição de motivos” do projeto do PS insiste com razão sobre a importância da liberdade completa do doente e que sua decisão seja “o fruto de uma vontade atual, livre, séria e esclarecida.” (p. 4) Em primeiro lugar, convém interrogar sobre o exercício da liberdade de uma pessoa doente, que se encontra numa situação de “sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal”. É duvidoso que um doente que sofre de uma dor extrema esteja na melhor situação para exercer sua vontade de maneira completamente livre. É muito difícil de verificar que não existem pressões, explícitas ou implícitas, do médico ou/e da família a favor da eutanásia. O que doente quer, em primeiro lugar, é que sua dor seja aliviada. O pedido de eutanásia é um pedido de ajuda, e principalmente um apelo ao reconhecimento que a sua vida ainda tem valor. O doente deseja que tudo seja feito para restaurar uma qualidade de vida aceitável. Lembrem-se: quase todas as dores físicas podem ser aliviadas. Para  os doentes sós que não têm família e não recebem visitas, e que também não são corretamente acompanhados numa instituição de segunda categoria, o fim de vida se torna extremamente difícil. Tal situação concerne principalmente pessoas marginalizadas e pobres. É compreensível que estas pessoas peçam a eutanásia. A responsabilidade do Estado é de fazer com que cuidados paliativos de qualidade sejam acessíveis a todos sem exceção, nem discriminação e que pessoas formadas sejam disponíveis para ser presentes perto do doente para que ele não sofra de solidão e tenha um acompanhamento humano e espiritual conforme aos seus desejos. Com certeza, o acesso à eutanásia não pode ser uma solução a carências dos serviços de saúde no acompanhamento dos doentes.

Michel Ghins, Université de Louvain

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