Duas problemáticas vão
ser examinadas. A primeira diz respeito às consequências da legalização da
eutanásia para a família, o pessoal médico e a sociedade. A
segunda prende-se com a verificação do caráter absolutamente livre e
isento de pressões externas do pedido de eutanásia. É verdade
que, especialmente quando o paciente está em situação de
sofrimento extremo que não pode ser aliviado e em fim de vida, os
familiares sofrem de ver uma pessoa querida num estado que eles
julgam com toda razão não ser condizente com a sua dignidade
humana. Como vimos, este
sofrimento pode ser consideravelmente aliviado pela aplicação de
cuidados paliativos adequados, que
não são limitados ao doente, mas se estendem a toda sua família.
Depois de uma eutanásia, principalmente quando esta última não foi
anunciada à família próxima – o que pode acontecer em
conformidade com o projeto de lei do PS – os parentes podem ter
grandes dificuldades no processo de luto e sofrer de problemas
psicológicos, de depressão que necessitam as vezes de um
acompanhamento psicológico, e até psiquiátrico (tem casos na
Bélgica).
Em relação ao pessoal
de saúde, a legalização da eutanásia oferece uma solução a um encarado como um
problema técnico: como suprimir a dor excessiva em todos os casos? A despenalização
decorre assim da recusa de aceitar, tanto da parte do paciente quanto
da parte do médico, que podem ter situações nas quais a medicina é
impotente para aliviar certos sofrimentos extremos. Logo, para evitar
de perder o controle, a última saída é pôr fim a vida do
paciente, ao seu pedido. A exigência de suprimir todo sofrimento é
atendida e a medicina é confortada no
seu poder de dominar e controlar toda situação, porque é o médico que pratica a eutanásia.
Mas, no desenvolver desse processo, perde-se o contato com o doente,
com o ser humano que sofre, e que precisa ser acompanhado, ouvido,
quando ainda vivo, com compaixão e amor. A legalização da
eutanásia torna o médico um tipo de funcionário intimado a
resolver problemas no quadro de uma medicina altamente técnica (Devos 2019). Não é surpreendente que, na Bélgica, a
despenalização da eutanásia tem criado um mal-estar importante no
corpo médico, também porque a eutanásia é proibida pelo juramento
de Hipócrates (Beuselinck 2017).
A legalização da
eutanásia envia uma mensagem grave a toda a sociedade. Em poucos
anos, na Bélgica, onde a eutanásia foi despenalizada em 2002, a
eutanásia veio a ser considerada como uma solução perfeitamente
aceitável em condições cada vez mais alargadas, como demonstram os
relatórios bienais da Commission fédérale de contrôle et
d’évaluation de l’application de laloi relative à
l’euthanasie. O número de eutanásias declaradas passou de 249 em 2002-2003 a 2357 em
2018. Estima-se que a metade das eutanásias não são declaradas. Isso indica que as
alternativas à eutanásia no quadro de cuidados paliativos não são
mais suficientemente exploradas e apoiadas. Não é excessivo afirmar
que, na Bélgica, adespenalização tem causado o enfraquecimento da
solidariedade humana e uma espécie de eutanásia do laço
social, porque a eutanásia é menos difícil de ser aplicada do que
um acompanhamento longo, exigente e custoso pelo corpo médico e a
família.
A segunda problemática está relacionada com a verificação do princípio da autonomia da pessoa que faz pedido de eutanásia. A
“exposição de motivos” do projeto do PS insiste com razão
sobre a importância da liberdade
completa do doente e que sua decisão seja “o fruto de uma vontade atual, livre, séria e
esclarecida.” (p. 4) Em primeiro lugar, convém interrogar
sobre o exercício da liberdade
de uma pessoa doente, que se encontra numa situação de “sofrimento extremo, com lesão
definitiva ou doença incurável e fatal”. É duvidoso que um
doente que sofre de uma dor extrema esteja na melhor situação para exercer sua vontade de maneira completamente livre. É
muito difícil de verificar que não existem pressões, explícitas
ou implícitas, do médico
ou/e da família a favor da eutanásia. O que doente quer, em
primeiro lugar, é que sua dor
seja aliviada. O pedido de eutanásia é um pedido de ajuda, e principalmente um apelo
ao reconhecimento que a sua vida ainda tem valor. O doente deseja que tudo seja feito para
restaurar uma qualidade de vida aceitável. Lembrem-se: quase todas
as dores físicas podem ser
aliviadas. Para os doentes sós que não
têm família e não recebem visitas, e que também não são corretamente acompanhados
numa instituição de segunda categoria, o fim de vida se torna extremamente difícil.
Tal situação concerne principalmente pessoas marginalizadas e
pobres. É compreensível que estas
pessoas peçam a eutanásia. A responsabilidade do Estado é de fazer com que cuidados
paliativos de qualidade sejam acessíveis a todos sem exceção, nem discriminação e que
pessoas formadas sejam disponíveis para ser presentes perto do
doente para que ele não sofra
de solidão e tenha um acompanhamento humano e espiritual conforme aos seus desejos. Com
certeza, o acesso à eutanásia não pode ser uma solução a
carências dos serviços de saúde no
acompanhamento dos doentes.
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