Cheguemos ao ponto central da discussão, que, como se sabe, diz respeito à autonomia. A esse respeito, não será preciso repetir que, na bioética dos princípios ou bioética principialista, a autonomia pessoal constitui o primeiro princípio, intervindo também como o primeiro argumento invocado pelos partidários da eutanásia. A autonomia dá à pessoa o direito de exprimir a sua vontade, após ter recebido as devidas informações relativamente à sua situação. Sabe-se que, entre a autonomia e o acto do consentimento informado, existe uma relação de hierarquização. O acto de recolher o consentimento informado é uma regra, de prática obrigatória, que se fundamenta no principio da autonomia pessoal, e esta justifica-se pelo valor da dignidade humana. Invertendo a linha das expressões, diremos que é o valor inerente à dignidade humana que envolve o princípio de autonomia, o qual se concretiza em uma ou várias regras, entre as quais o consentimento informado. Do ponto de vista da reflexão bioética, os princípios colocam-se deste modo entre os grandes valores básicos da bioética e a sua concretização em regras.
Contudo, a autonomia pode ser considerada como um dado que decorre da liberdade do ser humano. É por isso que, em vez de partir da autonomia, considero mais útil analisar o modo como se vive a liberdade.
Esta tem pelo menos dois sentidos diferentes embora complementares. Em primeiro lugar, há a liberdade de escolha, a autodeterminação sem a qual não haveria liberdade; mas a liberdade está longe de se esgotar neste primeiro sentido, porque o mais importante da liberdade é a realização, que se segue à autodeterminação. Com efeito, se a autodeterminação não fosse seguida pela realização daquilo que se decide, se a liberdade não fosse outra coisa senão decidir, seria quase preferível nunca decidir, precisamente para poder preservar permanentemente a liberdade como possibilidade de escolha; tal é com efeito o caso se a liberdade se limitasse a ser autodeterminação. O absurdo desta situação manifesta que o essencial da liberdade não é o facto de poder escolher, mas o conteúdo da realização que sucede à escolha e que precisamente é a liberdade realizada. Portanto, o conteúdo realizado após a decisão é, filosoficamente falando, o sentido mais importante da liberdade, dado que é só este conteúdo que confere à liberdade a sua consistência, sendo essa mais rica que a própria possibilidade de escolha.
Noutros termos, é verdade que a liberdade implica a capacidade de escolha, mas limitar a liberdade à escolha seria privá-la daquilo que é o mais importante nela, isto é, a sua auto-realização. Contudo, a liberdade está envolvida de parâmetros que reduzem o seu leque de possibilidades. É por isso que não há liberdade efectiva sem o consentimento a tudo aquilo que lhe escapa e que faz dela uma liberdade finita. Na sua análise fenomenológica da liberdade, Paul Ricoeur, mostrou longamente, desde 1950, que na sua finitude a liberdade exige a aceitação interior das condições determinantes que não é possível alterar; entre outros aspectos, estas condições abrangem a data e o lugar do nosso nascimento, o meio cultural com a língua materna, as primeiras influências recebidas, etc.
Neste esboço de análise, a autonomia pessoal aparece, portanto, apenas como a base do primeiro momento da auto-realização da liberdade; ora, este primeiro momento só tem sentido em relação com o segundo, sem o qual o exercício da autonomia se limitaria à instância da decisão.
Aplicando este raciocínio filosófico elementar à problemática da eutanásia, percebemos que, aquilo a que chamámos o momento da realização da liberdade se reduz ao acto que confere a morte, o qual consiste em suprimir toda a possibilidade de ulterior realização humana. No caso do suicídio e da eutanásia, a liberdade de escolha tem como realização a cessação de se realizar humanamente, dado que. a morte põe fim a qualquer possibilidade de realização livre. Noutros termos, na escolha da morte, o projecto de realização de si consiste na negação da possibilidade de realização. A única realização da liberdade torna-se o acto da sua autosupressão.
É evidente que cedo ou tarde a morte surge, com ou sem a nossa vontade. Mas o acto da liberdade que confere a esta a sua dimensão de realização – e não de capitulação diante da vida – consiste no consentimento durável e paciente desta inelutabilidade e não na supressão do acto que nos faz consentir à vida. O título do livro póstumo de Paul Ricoeur Vivant jusqu´à la mort (Vivo até à morte) tem sentido precisamente porque a realização da liberdade, se não quiser tornar-se fictícia, implica o consentimento à vida até à morte involuntária e não até à sua escolha voluntária.
Além disso, no seu valioso pequeno livro sobre a eutanásia, no qual os argumentos principais são analisados com muita sabedoria, o Professor Walter Osswald nota que a autonomia do doente que pede a eutanásia precisa, para que a morte aconteça, do acordo do médico, chamado, ele também, a exercer a sua autonomia sobre a avaliação do paciente. Isso já mostra que a autonomia do doente não é absoluta, porque depende do consentimento do médico.
Esta situação remete para uma questão fundamental: qual é a justificação ética – e não primordialmente jurídica – do acto de infligir a morte a pedido? Como é que se pode considerar como um cuidado ao doente o facto de o fazer morrer? Se a arte médica consiste em acompanhar o doente até à morte, como é que a solicitude do médico que inflige a morte pode ser compreendida como um cuidado, un soin?
Com a eutanásia, o grande risco consiste em transformar a profissão médica, como se essa deixasse de se reger pelo cuidado que trata da vida até ao fim, mas passasse por incluir a administração da morte que suprime a necessidade de cuidado. Será, com efeito, que o cuidado pode, por definição, provocar a morte intencional, que torna o próprio cuidado inútil? Cuidar é acompanhar para aliviar o peso dos sofrimentos de toda a espécie e não deitar fora a água do banho e a criança.
A título pessoal, lembrarei que, num Colóquio de Bioética na Suíça há mais ou menos quinze anos, um amigo holandês disse que as estatísticas da eutanásia nas mortes hospitalares eram oficialmente de 5% no seu país, mas que praticamente, com os actos encobertos de eutanásia, eram de 18%, o que muito o preocupava. Se este facto permanece ainda actual, é melhor recomendar uma certa precaução quando se entra com uma doença grave num hospital holandês.
( excerto de texto Acerca da Eutanásia e da Dignidade Humana de Michel Renaud, Bioético)
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