Segundo a sua etimologia, a eutanásia significa, na base da etimologia do grego, a «boa morte». Na verdade, quando para nós soar a hora, é o que todos desejamos. Contudo, no debate sobre a eutanásia, o sentido desta é diferente: a eutanásia apenas está presente quando alguém, em geral um médico ou agente de saúde, põe fim à vida de uma pessoa que emitiu explicitamente a sua vontade de morrer, ou mesmo quando se põe fim à vida de uma pessoa de que se presume, na base de sérios indícios, que quer morrer. Esta análise far-se-á em três tempos. Em primeiro lugar, algumas reflexões prévias balizarão o problema, embora ficando aquém do debate propriamente dito. Em seguida, entrar-se-á no coração da discussão, com uma especial insistência sobre a compreensão da dignidade humana. Enfim, a terceira parte tratará de algumas questões especiais, como se fosse o tempo das questões suplementares de um debate.
I. Considerações prévias. Antes de entrar na discussão convém tecer algumas considerações. Em primeiro lugar, deparamo-nos com um paradoxo – de que me falava recentemente a professora Gabriela Castro, professora de filosofia na Universidade dos Açores. A sociedade actual faz, como nunca antes, o máximo para prolongar a nossa esperança de vida, mas, ao mesmo tempo, nas últimas décadas, tende para legalizar a morte administrada aos que a pedem. Por um lado, prolonga-se a vida e, por outro, tenta-se acelerar a morte, quando a vida é avaliada como desprovida de qualidade; não se pode não estar sensível a este contraste. Em seguida, o termo eutanásia não está reservado apenas aos estados de doença terminal. O caso de Ramón Sampedro, tetraplégico da Galiza retratado no filme Mar adentro, não estava numa situação terminal quando pediu a eutanásia; foi uma amiga que, a revelia de todos, lhe preparou o coquetel letal. A situação semelhante verificou-se na história narrada no filme Million Dollar Baby.
Além disso, a realidade sociopolítica da eutanásia confirma a presença de um sério risco conhecido sob o nome de slippery slope, isto é, de rampa deslizante (ou resvaladiça), de que o Benelux oferece o exemplo: em primeiro lugar, legisla-se sobre a eutanásia apenas para doentes cujo sofrimento é considerado intolerável; em seguida, estende-se esta possibilidade a crianças com sofrimento terminal, com ou sem o consentimento dos pais; actualmente, o deslize vai ainda para os doentes do foro psiquiátrico que não são doentes terminais, mas que, por exemplo, sofrem de uma depressão que consideram insuportável. Esta extensão concreta da aplicação da eutanásia não é irreal, está a ser discutida em determinados países. Qual poderia ser o passo seguinte? Eutanasiar seres humanos portadores de deficiências? Esperemos que não, embora esta rampa deslizante se aproxime bastante de formas mais ou menos subtis ou mesmo claras de eugenismo.
A seguinte consideração prévia leva-nos a reconhecer que, de facto, nunca será possível chegar a um consenso nessa matéria, matéria que, aliás, pertence ao registo das questões bioéticas ditas fracturantes, porque dividem os membros da comunidade social e política; sabe-se que a maior parte das questões fracturantes diz respeito a problemas que incidem no início e no fim da vida humana.
É consensual reconhecer que a criação de centros que propõem cuidados paliativos, em regime hospitalar ou ambulatório – centros chamados a conhecer no nosso país um desenvolvimento altamente desejável –, contribui e contribuirá sempre para diminuir consideravelmente os pedidos de eutanásia. Contudo, os analistas admitem que subsistirão sempre alguns pedidos irredutíveis desta natureza. Pelo facto de implicar uma opção relativamente ao sentido da existência humana, esta problemática justifica e exige que não seja apenas o Parlamento que, em primeiro lugar, se pronuncie sobre a eutanásia. É preciso, com efeito, devolver a questão à sociedade no seu conjunto, em vista a informar os cidadãos, contribuindo desta maneira para a tomada de consciência daquilo que está em causa na prática da eutanásia.
Finalmente, não se pode ignorar que os hospitais e o Estado retiram da eutanásia um benefício económico: face às despesas de cuidados continuados, o doente ao qual se abrevia a vida, custa menos caro à família, ao hospital e ao Estado. Ao lembrarmos esta verdade, não se quer dizer nem insinuar que quem, médico ou familiar, assiste um doente na fase terminal e pratica nele a eutanásia deseja livrar-se da sua pessoa ou tem um interesse em vê-la morrer. Até agora e provavelmente na maior parte dos casos, o motivo alegado para a realização da eutanásia é a compaixão diante de uma vida considerada como não tendo o mínimo das condições necessárias para preservar a sua dignidade.
*Michel Renaud - Designado pela Academia de Ciências de Lisboa. Professor catedrático aposentado de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Membro da Secção de Letras da Academia das Ciências de Lisboa. Membro do CNECV desde o primeiro mandato. Membro fundador e vogal da Direcção do Centro de Estudos de Bioética de Coimbra. Licenciado e Doutorado em Filosofia e em Filosofia e Letras pela Université Catholique de Louvain (Bélgica).
( continua)
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