De uma esposa ao marido
“É tão necessário voltar às fontes que nos devolvem o Ser inteiro e a paz profunda que dele emana! Esta viagem interior é também a escola de vida e a inspiração para a viagem interior rumo ao essencial que necessitam fazer os que nos estão confiados, especialmente os filhos. Esta é a maior herança que a eles se pode deixar. Este regresso à CASA DO PAI, como lhe chamo pela fé, que é um vai e vem de fidelidades e de afastamentos (mais ou menos longos) mas que nos formam e nos humanizam, tornando-nos humildes por nos sabermos eternos peregrinos e não seres perfeitos (…) Nesta viagem interior, simplesmente regressamos a casa, aos “lugares” onde sempre fomos nós próprios, o mais possível nós próprios e onde nos sentamos no colo do Pai de novo. E desabafamos profundamente, como eco profundo do coração “como é bom estar novamente em casa!!!” Aos poucos ou de um momento para o outro, os quistos da sensibilidade que nos afastam dos outros dissipam-se e tornam-se pó, sem significado, esquecidos, invisíveis. O perdão é natural e lava a alma do que a turva. Fica somente a paz!
Foi esta paz que testemunhámos no olhar feliz da tua mãe ontem no hospital ao escutar as músicas do Pe António que lhe levei e ao rever cenas que já conhecia, como vê-lo em palco, recordando os momentos em que encheu os nossos corações de paz, da esperança e do amor que cantava… Aquele olhar profundo de alegria por “regressar a casa”, onde se foi feliz é uma das dádivas do entardecer da vida. “Nunca pensei viver isto”, disse a tua mãe, ao que respondi com um sorriso, “mas eu pensei”.
Nestes momentos de “aqui e agora” que aos poucos se tornam mais frequentes até serem permanentes, o céu vem até nós. Percebemos que a eternidade acontece e que não somos deste mundo. Saboreamos no presente a felicidade que nos move como seres portadores de alma. Estes momentos de “aqui e agora” são a conversão ao melhor de nós, que está ao serviço dos que nos estão confiados. São no fundo, a conversão a Jesus Cristo que habita em nós pelo Baptismo e pelos sacramentos que recebemos (aquilo em que acredito).
Viajo ao melhor de mim ajudando a tua mãe a viver estes pedaços de paz e de esperança. Dificilmente entendem a minha paixão pelos doentes terminais que me habita há muito. Chocam-se até quando falo dela. Mas com eles, eu toco o céu, a paz que sei que me espera e da qual tanto necessito. Vivo aqui e agora pedaços da eternidade que me mostram por onde passa a autêntica felicidade. Vivê-lo com a tua mãe é ainda muito mais revelador desse céu e desse Deus que nos uniu e que nos chama a regressar a casa incessantemente. Porque é a tua mãe, a quem sempre estive grata por ter gerado quem escolhi perante Deus para amar e para cumprir a nossa missão neste mundo onde estamos de passagem, em especial a missão de mãe e de pai.
A tua mãe partirá em paz e feliz, sinto que assim será. Habita-me uma fé profunda de que ela sorrirá desde o céu para a obra gerada em ti e através de ti. Estará ainda mais presente na tua vida, vigiando e cuidando dos teus passos, apesar da saudade. Acredito que também irá chorar quando deres passos errados, como choram as mães na terra. Intensificar estes pedacinhos de céu na terra é o mais importante que podemos fazer por ela. Eles são também uma oportunidade para santificar as nossas vidas, tocando o essencial da vida e o seu sentido último. Partem mas não morrem aqueles que deixam vivo nos corações do que lhe estiveram confiados um pedaço do melhor de si e apenas a recordação dos momentos em que fomos felizes - os únicos que importam. Vivemos para dar-lhes densidade dentro de nós e multiplicá-los o mais possível e isto é um acto da vontade, uma decisão. É escolher o Amor!
Em mim ficará a memória de uma mãe comigo, com quem partilhei as dores e o amor vividos, de mãe para mãe mas também o de filha. Um amor imperfeito mas ao mesmo tempo a via para nos aproximar do amor de Deus. Como te disse em algumas das nossas cartas de há 30 anos "só poderia amar a mãe de quem amo". Não poderia amar-te a ti e não amar a tua mãe. As palavras que ela agora pronuncia são como o colo de Deus para mim… Não as esperava. São um enorme presente de Deus na minha vida. Uma comunhão de almas que derrama sobre o meu rosto lágrimas cheias de sentido sem que me peçam licença, como agora. Poder cuidar dela neste momento, é uma graça imensa. Deus sabe!
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