sexta-feira, 30 de junho de 2017

Carta de uma Mãe ao bebé Charlie

Querido Charlie
Ainda esta noite, o meu filho de nove anos surpreendeu-me com esta frase: "Mãe, o Pedro está a dormir, não é melhor pôr-lhe a ventilação"? Fiquei surpreendida por esta atenção ao seu irmão doente, que nos ajuda na tarefa de cuidadores, mas também pela normalidade que a ventilação já tem em nossa casa.  
O Pedro tem 4 anos e usa um BiPap sempre que está a dormir. Não é igualzinho ao teu, a este chamam não-intrusivo. O Pedro, como tu já teve um ventilador intrusivo. Aquele que tu tens há 10 meses, o Pedro precisou durante 3 semanas, numa pneumonia muito grave. Foi tempo suficiente para o seu corpo mudar! Aproximou-se, nesse tempo, do corpo que ele teria se a sua respiração fosse normal. No final dessas semanas e depois de duas tentativas, conseguiu respirar autonomamente sem essa ajuda, graças a uma potente intercessão milagrosa e um empenho paciente e generoso da equipa médica. Depois disso o seu corpo voltou rapidamente àquele que é o dele: um tórax menos amplo, levemente afunilado no peito. É o seu corpo deformado pela doença, que, aos poucos, aprendi a amar.
Querido Charlie, como os teus pais te amam! É um sinal evidente para todo o mundo, do amor de Deus por ti, uma afirmação clamorosa do teu inestimável valor, que leva tantos a amar-te, mesmo sem te conhecer. Este amor não carece de suporte de vida. É a própria vida. E a tua, como a de todos nós, cumpre-se no encontro com o Senhor da Vida, que te quis, assim parece, para que pudesses rapidamente voltar a Ele, não sem  que, nesse tempo, nos provocasses profundamente, aumentando em nós a consciência de que não somos os donos da vida.
Querido Charlie, isto é tão difícil para nós pais, que desejamos ter os nossos filhos connosco. Sou muitas vezes obstinada com todos os meus quatro filhos, de maneiras bem diferentes. Mas amar, aprendi com a Chiara Corbela Petrillo, é o contrário de possuir. Os meus filhos não são meus, como tu não és dos teus pais. Tu pertences a este Senhor, que "dá a respiração a todas as coisas". Àquele que verás face a face, no dia do cumprimento do teu destino. E a máquina que te deu a respiração até aqui, não se aproxima nem um pouco da beleza que nesse dia irás encontrar.
Rezo por ti, pelos teus pais e por toda a tua família, com coração comovido pelo amor que exaltaste em nós e pedindo que este forte desejo de união contigo, nos faça desejar cada vez mais a união com Aquele que nos dá, a todos, a vida e a respiração. 
Inês, mãe do Pedro
Pode ler este texto no blog Povo

terça-feira, 27 de junho de 2017

O engano da eutanásia, uma perspectiva jurídica, por Francisco Alvim*

Em Portugal vivemos num Estado de Direito Democrático, que se distingue de outros regimes precisamente por ter o Homem no centro da sua actuação, nas múltiplas vertentes do poder legislativo, executivo e judicial, assentando no princípio da dignidade da pessoa humana. Como é natural, a primeira decorrência deste princípio manifesta-se, desde logo, no direito à vida, que deve ser defendido e protegido pelo Estado e que é o direito por excelência, sem o qual todos os outros deixam de fazer sentido ou até mesmo de existir. É um direito que se impõe "per si", é constitutivo, é – no plano dos direitos – como se fosse a nossa pele, no plano físico. O direito à vida vem amplamente consagrado no direito internacional, desde logo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda, para nós que somos portugueses e pertencemos a um estado membro da UE, na Carta Fundamental dos Direitos da União Europeia. Então cumprimos todo o tipo de directivas e normas europeias, por exemplo a nível fiscal, bancário ou financeiro e não havemos de cumprir ou respeitar o direito mais importante que aquela carta (sublinho, Fundamental) atribui a cada ser humano de cada país? Julgo até que haverá margem para que se discutir a (i)legalidade e, eventualmente, a (in)constitucionalidade de uma lei que despenalize a eutanásia nos moldes propostos, seja em que país for da UE.  

Por outro lado, a nível nacional, aquilo que é o princípio fundacional e a génese valorativa essencial do Estado de Direito e cuja consagração está patente, como acabámos de ver, em diversos diplomas internacionais, goza de uma protecção clara na nossa Constituição, a qual determina, numa expressão muito curiosa e até pouco comum, que o direito à vida é inviolável. É dizer, além de não poder ser violado por outrem, é também um direito inalienável ou indisponível, ou seja, o sujeito não pode dele dispor, mesmo que o quisesse fazer de forma consciente. E porquê? Porque a liberdade não se sobrepõe àquele direito, não é anterior, não é definidora de quem somos ou do que é o homem (embora seja uma das suas características). Quem é a favor da eutanásia põe tónica no direito a autonomia e na liberdade, mas esquece o sofrimento! A falacia está aí. Não há pensamento mais egoísta que esse. De facto, como dizia um outro jurista, ninguém é verdadeiramente autónomo em momento algum na nossa vida, nem em bebé, nem o idoso nem o é o doente. Mas também não o é o adulto, que se relaciona e precisa do outro para se completar. Nós precisamos do outro e o outro precisa de nós. Ignorar isto é ignorar a realidade. Afirmar que a autonomia se sobrepõe à vida é subverter todo o sistema. Nós constatamos a realidade como ela é, não a compreendemos nem alteramos conforme gostaríamos que ela fosse. A nossa constituição é claríssima. Esta lei, a ser aprovada tal como proposta pelo PAN e pelo BE, é inconstitucional. Por isso, a discussão da eutanásia não se pode fazer, se não se fizer antes a discussão constitucional sobre o direito à vida. E não basta o argumento de que a violação do direito à vida já é admitida noutros casos, como por exemplo na legítima defesa, pois neste caso ninguém abdica voluntariamente do direito à vida (lá está, não há qualquer violação da tal indisponibilidade de que falava). Neste tipo de situações, estamos perante um caso de agressão injusta imposta pelo agressor, que atenta contra o direito à vida de outrem.  Portanto, não há, por assim dizer, uma sobreposição de um direito ao outro. Pelo contrário, eles equivalem-se e é nessa equivalência que o direito do agressor acaba por ceder, "sobrevivendo" o direito do agredido que de outra forma teria sido injustamente eliminado. Além disso, esta protecção constitucional adquire uma expressão normativa prática no nosso código penal, sendo punível o homicídio a pedido da vítima, o incitamento ou a ajuda ao suicídio e ainda o homicídio por compaixão, que muitos não se lembram de referir. Ou seja, todo o nosso ordenamento jurídico apresenta uma consistência e um encadeamento lógico e coerente que vem agora ser posto em causa. E não há ficção jurídica possível que permita a criação de uma causa justificante em termos penais que ponha em causa todo um sistema. Por outro lado, a visão meramente positivista do direito (o que é lei vale e é bom por si só, pelo simples facto de ser lei escrita) ignora séculos de história, como se o Direito não acolhesse inúmeros princípios decorrentes de concepções valorativas que orientam a vida em sociedade. Há exemplos de como esses conceitos adquirem expressão normativa prática: a boa-fé, a presunção de inocência, a igualdade ou a segurança. Serão valores que se traduzem em preceitos vazios, mecanicamente aplicados e sujeitos aos humores da Assembleia? O parlamento não pode tudo. 
Mas atenção, nenhum de nós quer que o outro sofra, é preciso desconstruir a ideia de que quem é contra a eutanásia é a favor do sofrimento. Isso pura e simplesmente não é verdade. Não queremos impor um modelo de vida a ninguém nem exigimos que a heroicidade seja elevada a bem jurídico que deva ser protegido. Pelo contrário, todos sabemos que a doença e a dor são inerentes à condição do ser humano e é isso que não podemos ignorar. É preciso recuperar e criar uma consciência social forte de humanidade. É preciso reforçar a rede de cuidados médicos, de instituições de solidariedade social e permitir a formação especializada de pessoas que possam ajudar aqueles que mais sofrem. É isto que está em causa. Que tipo de sociedade queremos deixar aos nossos filhos? 
Por fim, é preciso não ignorar o que se passa lá fora, noutros países que já aprovaram estas leis. Todos eles começaram por aprovar a eutanásia apenas para casos muito limitados, mas hoje em dia ela é aplicada numa multiplicidade de situações assustadora (a pedido do médico, porque se teve um desgosto de amor ou até já se aplica em crianças recém nascidas com problemas). A rampa deslizante não é um mito. É uma realidade. Por isso, e pelo seguro, mais vale não seguirmos esta via."
*Francisco Alvim é Advogado, discurso em sessão de esclarecimento no Barreiro, dia 23 de Junho

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Que é o Homem? - A opinião de Tiago Amorim, professor de Filosofia

Qual a essência do HomemComo encaixar tantas pessoas de diferentes origens  do mundo na mesma pergunta? Sou brasileiro e coloco-me como homem o que dispensa a minha nacionalidade neste tema sobre a eutanásia. No séc. XIX Descartes surge na esteira  do movimento da revolução científica. que quer explicar o mundo de forma matemática. E na verdade a matemática acalma quando chega ao resultado. Trabalha  com exactidão e, por isso, não tem poesia. Este movimento tentou calcular a vida humana. Como se a pessoa encaixasse numa régua e tudo fosse medível. Exemplo: esta pessoa está mais perto da morte, ou tem mais vida, está mais morta que viva, etc....falam da vida humana com medidas.
Existe um filme protagonizado por Bruce Wilis "O sexto sentido" que depois de um tempo de conversa com um rapaz perturbado, este diz-lhe:  vejo  gente morta!"
A morte não permite mais a mudança. Tudo o que vive é mudança, tal como um rio, que muda em cada instante, e o mergulhar nas águas num momento não será nas mesmas aguas num outro momento, apesar de ser o mesmo rio; onde não há novidade não há alterações na vida. Então: Quem vai julgar o quem está vivo ou morto? Como vamos continuar a matematizar a vida mesmo sabendo que pomos em risco a morte de algum propositadamente? Qual é a noção de sofrimento? Qual é a noção  da vida? Qual é a noção da morte? A vida humana tem diferentes matizes, e qualquer um de nossos pode estar em condições de Cuidados Paliativos existenciais. Perguntaram ao filósofo espanhol  Julian Marinas, se era a favor da pena de morte. E ele respondeu com prudência: " como posso mandar alguém para um lugar que não conheço?"  Precisamos de Prudência!
 Em Portugal, como no Brasil, gostamos muito de ter um "pai" Estado, que proíbe isto, legaliza aquilo, manda nisto, manda legaliza matérias do foro íntimo de cada pessoa.  E por isso, cada vez que o Estado legisla achamos que está bem.
Com a eutanásia será que nós queremos que o Estado legitime algo que nós não sabemos?
Penso que vai o homem  vai voltar a lei natural, à consciência humana que ainda está muito ferida.
E não podemos nunca esquecer que a existência precede a essência ( que são as características individuais de cada um). E não podemos confundir. Ontologicamente somos todos iguais, mas existêncialmente diferentes. 
É perigosos propor esta questão a uma realidade tão complexa que existe no mistério da vida.
Somos realidade em criação, e por isso também temos uma forma diferente de ver a morte, somos a única criatura capaz de dar sentido à vida.
*Discurso na Sessão de Esclarecimento de STOP eutanásia, no Barreiro, dia 23 de Junho